Do ponto de vista dos palestinos, oliveiras arrancadas
eram a vida, o sustento, o alimento e a essência da cultura local
O que é uma árvore? O que são 3.100 árvores? A pergunta nada
tem de aleatório. No caso em questão, a resposta se bifurca em duas variáveis —
depende de “para quem” e “para que” serviam as 3.100 oliveiras arrancadas de
uma aldeia palestina na
Cisjordânia.
A força bruta naquela região já faz parte da paisagem, por
repetir-se há décadas. Colonos judeus fincam novos postos em terras que não
lhes pertencem, entram em choque com os aldeões, contam com a cumplicidade ou
indiferença das Forças de Defesa de Israel e vão
aumentando seu latifúndio.
O episódio da quinta-feira, dia 22, deixou um colono invasor
ferido, e 12 palestinos foram presos, com todas as moradias da aldeia
devassadas pelos militares. Só que um dos palestinos envolvidos no confronto
tinha conseguido escapar. Para facilitar sua captura, a solução encontrada foi
desbastar o terreno, eliminando 3.100 oliveiras. Simples assim. Não com
motosserras, mas por um exército de vorazes escavadeiras. À luz do dia e sem
constrangimento. Vida que segue.
Consideradas estorvo para a segurança de
Israel, as árvores foram arrancadas do solo à vista dos descendentes de quem as
plantara. Do ponto de vista dos palestinos, elas eram a vida, o sustento, o
alimento e a essência da cultura local. Eram testemunhas silenciosas da
história de todo um povo.
Só que a natureza é teimosa, insiste em sobreviver a seu
pior inimigo — o ser humano — e ensina a não desesperançar. Como não se lembrar
das papoulas que brotaram nos campos chacinados da Batalha de Flandres, em
1914? A terra havia sido revirada com tamanho furor nos combates de trincheira
da Grande Guerra que sementes dormentes havia décadas conseguiram reemergir na
devastação. E logo papoulas, de aspecto tão frágil! O combatente e poeta
canadense John McCrae imortalizou em verso o que sentiu ao vê-las: Nas terras
de Flandres, as papoulas vão brotar/Entre as cruzes, em filas, a nos lembrar/O
lugar onde repousamos, em paz e solidão/E no céu as cotovias em corajosa
canção/Voam, pouco ouvidas entre o som da explosão.
Como explicar, também, o centenário salgueiro logo à direita
da entrada de Auschwitz 1, um dos três campos de extermínio nazista do
complexo? Ele fora ali plantado muito antes da Segunda Guerra, à época em que o
local era apenas uma caserna militar perto de Cracóvia. Cresceu robusto,
próximo aos trilhos que levavam à morte, e continua ali como testemunha
silenciosa do horror, enquanto vão morrendo uma a uma as árvores plantadas
pelos aprisionados para encobrir as instalações de extermínio de Auschwitz 2-Birkenau
e Auschwitz 3.
Halina Birenbaum, uma das sobreviventes do Holocausto ainda
viva (95 anos), dedicou àquelas árvores um de seus muitos poemas sobre a
necessidade de nunca esquecer: Muitos, como eu, confessaram às árvores aqui,
suplicaram lembrança/Queriam subir ao topo e voar para longe/Todas as marcas
deles desapareceram, foram varridas/E as árvores viram tudo, as árvores
ouviram/E, como é seu costume,/Cresceram, brotaram folhas, permaneceram em
silêncio.
Também faz bem à alma se emocionar com a pereira-de-jardim
encontrada entre os destroços das Torres Gêmeas um mês depois do ataque
terrorista do 11 de Setembro de 2001. Seu tronco estava quase carbonizado, e
umas poucas raízes pareciam farelos. Mas ela ainda respirava. Recebeu
tratamento especialíssimo por nove anos. Hoje mede mais de 9 metros de altura,
foi batizada “Árvore da Sobrevivência” e está novamente frondosa, enraizada na
parte sul do memorial nova-iorquino. Serve de lembrança viva das perdas e de
prova de que resistir é preciso. Suas sementes são enviadas todo ano a alguma
cidade do planeta que tenha passado por grande dor coletiva.
E assim voltamos às 3.100 oliveiras de uma Palestina que o
governo de Benjamin
Netanyahu teima em enterrar viva — primeiro em Gaza, depois na
Cisjordânia. Não conseguirá. A História já nos deu demonstrações suficientes de
que eliminar pessoas é fácil, matar identidades é mais difícil. A força e
grandeza da frase “I contain multitudes”, imortalizada por Walt Whitman, é
monumental quando comparada à força bruta de um exército que perdeu a razão.
Extraída do poema “Song of myself” (Canto de mim mesmo), “eu abrigo multidões”
simboliza a vastidão do eu, sua riqueza interna e a coexistência das
contradições tão essenciais para o entendimento da condição humana. Ao destruir
as oliveiras da Palestina, Israel está destruindo a si mesmo.


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