Sabe lá o que é ser uma nação nascida da brutalidade
colonial e, sistematicamente, golpeada?
A revista britânica The Economist escreveu sobre o exemplo
de maturidade democrática que o Brasil de Lula dá
aos Estados
Unidos de Trump. Só pensei em Vinícius de Moraes. Não se trata de
“poesia a esta altura”, mas das situações em que brasileiros nadamos de
braçada. No livro “Para viver um grande amor” (1962), Vinícius dedicou poema “a
um americano simpático, extrovertido e podre de rico” que encontrara em Los
Angeles (Califórnia) dias antes de retornar ao Brasil, depois de meia década
nos Estados Unidos. Mister Buster não compreendia por que o poeta preferia
voltar à Latin America, com prejuízo financeiro, mesmo podendo
ficar um ano mais na América. Na resposta em poesia lambuzada de ironia, o
brasileiro enfileira bens e serviços, propriedades e angústias que cercam a
vida boa do gringo. E finaliza exaltando experiências que só o Brasil
proporciona:
— Me diga sinceramente uma coisa,
Mr. Buster:/O senhor sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?/O senhor sabe lá
o que é ter uma jabuticabeira no quintal?/O senhor sabe lá o que é torcer pelo
Botafogo?
Dois meses atrás, em duro editorial, a Economist afirmou que
a política externa de Luiz Inácio Lula da Silva “faz o Brasil parecer cada vez
mais hostil ao Ocidente”. Em título, destacou que o presidente da República
“perde influência no exterior e popularidade em casa”. Nesta semana, ciente da
empreitada de Donald Trump em retaliar mercadorias e autoridades brasileiras
por anistia de Jair Bolsonaro, aliado da extrema direita, a revista britânica —
conservadora, desde sempre — mudou de tom. “O que o Brasil pode ensinar à
América” foi o título de capa para uma encorpada reportagem sobre o julgamento,
a partir de terça-feira, do núcleo crucial da trama golpista. Ao todo, são oito
réus, entre os quais o ex-presidente, três generais e um almirante.
Contrastando com os Estados Unidos, o Brasil “dá um exemplo
de maturidade democrática” por ter investigado criminalmente o ataque às sedes
dos três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Nos Estados Unidos, o republicano
Trump insuflou a violência contra o Congresso para tentar impedir a
certificação da vitória do democrata Joe Biden nas urnas em 2020. Cinco pessoas
morreram. Foi acusado de quatro crimes, livrou-se da condenação, elegeu-se para
o segundo mandato. Empossado em janeiro último, concedeu indulto coletivo a
1.500 condenados, entre eles Jacob Anthony Chansley, o extremista que, torso
nu, rosto pintado com a bandeira americana, pele de urso com chifres na cabeça,
viralizou como imagem-símbolo da invasão do Capitólio. A indumentária remete ao
tribalismo masculino (ou masculinismo), movimento que advoga a supremacia dos
homens, em detrimento dos direitos de mulheres e pessoas LGBTQIA+.
Conhecido por Viking do Capitólio ou Xamã do QAnon — teoria
da conspiração que marca o ultratrumpismo —, Chansley foi acusado de seis
crimes, mas acabou condenado a 41 meses por obstrução de procedimento
eleitoral, depois de acordo com a promotoria. Ficou preso por dois anos e
esteve em regime aberto até ser indultado por Trump. Em liberdade, postou numa
rede social:
— Fui perdoado, bebê. Agora vou comprar umas armas.
Foi essa figura caricata, radicalizada e anistiada que
inspirou a ilustração de capa, em que Bolsonaro usa na cabeça idêntico adereço
e traz o rosto pintado com as cores da bandeira do Brasil. A Economist informa
que o processo pelo golpe tentado, entre outros crimes, avançou, mesmo sob a
pressão dos Estados Unidos. Instado por Eduardo Bolsonaro, o governo Trump
impôs tarifas de 50% a produtos brasileiros, abriu investigação em meia dúzia
de setores por concorrência desleal, revogou vistos de autoridades e aplicou a
Lei Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes, relator da ação penal no
Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro e o filho deputado já estão indiciados por
coação no curso do processo.
Em discurso no início do mês, o presidente do Supremo, Luís
Roberto Barroso, listou os momentos em que o Brasil enfrentou golpes,
contragolpes, intervenções militares, tentativas ou rupturas institucionais. Em
136 anos de República, foram duas dezenas de ameaças, incluindo o Estado Novo
de Getúlio Vargas (1937-1945), os 21 anos de ditadura militar (1964-1985) e o
plano bolsonarista de ficar no poder, que “fracassou por incompetência, não por
intenção”, nas palavras da Economist:
— Os dois países parecem estar trocando de lugar. Os Estados
Unidos estão se tornando mais corruptos, protecionistas e autoritários. (...)
Em contraste, mesmo com o governo Trump punindo o Brasil por processar
Bolsonaro, o país está determinado a salvaguardar e fortalecer sua democracia.
São as marcas de maturidade política a mostrar que, hoje, “o
papel do adulto democrático do Hemisfério Ocidental mudou para o Sul”.
É, Dona Economist, sabe lá o que é ser uma nação nascida da
brutalidade colonial e, sistematicamente, golpeada?


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