Benjamin Moser, especial para a Folha de S. Paulo
Caro Caetano,
Nos EUA, quando eu era menino, havia uma campanha para
prevenir acidentes na estrada. O slogan rezava: "Amigos não deixam amigos
bêbados dirigir". Lembrei disso ao ler suas declarações e as de Paula
Lavigne sobre biografias no Brasil. Fiquei tão chocado que me sinto obrigado a
lhe dizer: amigo, pelo amor de Deus, não dirija.
Nós nos conhecemos há muitos anos, desde que ajudei a editar
seu "Verdade Tropical" nos EUA. Depois, você foi maravilhoso quando
lancei no Brasil a minha biografia de Clarice Lispector, escrevendo artigos e
ajudando com o alcance que só você possui. Admiro você, de todo o meu coração.
E é como amigo e também biógrafo que te escrevo hoje. Sei
que você sabe da importância de biografias para a divulgação de obras e a
preservação da memória; e sei que você sabe quão onerosos são os obstáculos à
difusão da cultura brasileira dentro do próprio Brasil, sem falar do exterior.
Fico constrangido em dizer que achei as declarações suas e
da Paula, exigindo censura prévia de biografias, escandalosas, indignas de uma
pessoa que tanto tem dado para a cultura do Brasil. Para o bem dessa mesma
cultura, preciso dizer por quê.
Primeiro, achei esquisitíssimo músicos dizerem que biógrafos
querem ficar com "fortunas". Caetano, como dizem no Brasil: fala
sério. Ofereço o meu exemplo. A biografia de Clarice ficou nas listas de mais
vendidos em todo o Brasil.
Mas, para chegar lá, o que foi preciso? Andei por cinco anos
pela Ucrânia, pela Europa, pelos EUA, pesquisando nos arquivos e fazendo 257
entrevistas. Comprei centenas de livros. Visitei o Brasil 12 vezes.
Fiquei contente com as vendas, mas você acha que fiquei
rico, depois de cinco anos de tais despesas? Faça o cálculo. A única coisa que
ganhei foi a satisfação de ver o meu trabalho ajudar a pôr Clarice Lispector no
lugar que merece.
Tive várias vantagens desde o início. Tive o apoio da
família da Clarice. Publico em língua inglesa, em outro país. Tenho a sorte de
ter dinheiro próprio. Imagine quantos escritores no Brasil reúnem essas
condições: ninguém.
Mas a minha maior vantagem foi simplesmente ignorância.
Não fazia ideia das condições em que trabalham escritores e
jornalistas brasileiros. Não sabia quanto não se pode dizer, num clima de medo
que lembra a época de Machado de Assis, em que nada podia ofender a
"Corte".
Aprendi, por exemplo, que era considerado
"corajoso" escrever uma coisa que todo mundo no Brasil sabe há quase
um século, que Mário de Andrade era gay. Aprendi que era até inusitado chamar
uma cadeira de Sergio Bernardes de feia.
Aprendi o quanto ganham escritores, jornalistas e editores
no Brasil, e quanto os seus empregos são inseguros, e como são amedrontados por
ações jurídicas, como essas com que a Paula, tão bregamente, anda ameaçando.
É um tipo de censura que você talvez não reconheça por não
ser a de sua época. Não obriga artistas a deixarem o país, não manda policiais
aos teatros para bater nos atores. Mas que é censura, é. E muito mais eficaz do
que a que existia na ditadura. Naquela época, as obras eram censuradas, mas
existiam. Hoje, nem chegam a existir.
Você já parou para pensar em quantas biografias o Brasil não
tem? Para só falarmos da área literária, as biografias de Mário de Andrade, de
João Guimarães Rosa, de Cecília Meirelles, cadê? Onde é que ficou Manuel
Bandeira, Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre? Você nunca se perguntou por que
nunca foram feitas?
Eu queria fazer. Mas não vou. Porque o clima no Brasil,
financeiro e jurídico, torna esses empreendimentos quase impossíveis. Quantos
escritores brasileiros estão impedidos de escrever sobre a história do seu
país, justamente por atitudes como as suas?
Por isso, também, essas declarações, de que o biógrafo faz
isso só por amor ao lucro, ficam tão pouco elegantes na boca de Paula Lavigne.
Toda a discussão fica em torno de nossas supostas "fortunas".
Você sabe que no Brasil existem leis contra a difamação; que
um biógrafo, quando cita uma obra ainda com "copyright", tem
obrigação de pagar para tal uso. Não é diferente de você cantar uma música de
Roberto Carlos. Essas proteções já existem, podem ser melhoradas, talvez. Mas
estamos falando de uma coisa bem diferente da coisa que você está defendendo.
De qualquer forma, essas obsessões com "fortunas"
alheias fazem parte do Brasil do qual eu menos gosto. Une a tradicional inveja
do vizinho com a moderna ênfase em dinheiro que transformou um livro, um disco,
uma pintura em "produto cultural".
Não é questão de dinheiro, Caetano. A questão é: que tipo de
país você quer deixar para os seus filhos? Minha biografia foi elogiosa, porque
acredito na grandeza de Clarice. Mas liberdade de expressão não existe para
proteger elogios. Disso, todo mundo gosta. A diferença entre o jornalismo e a
propaganda é que o jornalismo é crítico. Não existe só para difundir as
opiniões dos mais poderosos. E essa liberdade ou é absoluta, ou não existe.
Imagino, e compreendo, que você pense que está defendendo o
direito dos artistas à vida privada. Mas quem vai julgar quem é artista, o que
é vida privada e o que é vida pública, sobre quem, e sobre o que se pode
escrever e sobre quem e, sobre quem não? Você escreve em jornal, você, como o
artista deve fazer, tem se metido no debate público. José Sarney, imortal da
Academia Brasileira das Letras, escreve romances. Deve ser interditada também
qualquer obra crítica sobre ele, sem autorização prévia?
Não pense, Caetano, que o seu passado de censurado e de
exilado o proteja de você se converter em outra coisa. Lembre que o Sarney,
quando foi eleito governador do Maranhão, chegou numa onda de aprovação da
esquerda. Glauber Rocha, também amigo seu, foi lá filmar aquela nova aurora.
Não seja um velho coronel, Caetano. Volte para o lado do
bem. Um abraçaço do seu amigo,
Benjamin Moser.
Benjamin Moser é autor de Clarice (Cosac Naify)
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