José Dirceu de Oliveira usava boné preto e calção branco nas
areias do paraíso baiano de Itacaré, na quarta-feira 13, quando mais uma vez
foi surpreendido pela história. Dessa vez, a surpresa não foi protagonizada por
homens fardados a serviço de um regime de exceção, contra o qual o
ex-todo-poderoso ministro empenhou boa parte de seus 67 anos. Na quarta-feira,
no final de uma das mais longas deliberações do Supremo Tribunal Federal, os 11
ministros praticamente encerraram o chamado julgamento do mensalão e 13 dos 25
réus já condenados tiveram suas prisões decretadas. Entre eles há empresários,
uma banqueira e diversos líderes políticos (leia quadro acima), mas Dirceu, sem
dúvida, é o principal personagem de uma história cujo desfecho pode representar
significativa mudança para o Brasil.
Em cinco décadas, José Dirceu viveu momentos difíceis e
também gloriosos da política brasileira. Liderou os protestos estudantis de
1968, exilou-se em Cuba e retornou ao Brasil como guerrilheiro disposto a pôr
fim à ditadura militar. Experimentou a clandestinidade, ajudou a organizar a
campanha das diretas-já, foi um dos arquitetos do PT e um dos principais
responsáveis pela chegada do partido ao poder. Tinha o projeto e estava se
preparando para ser o sucessor de Lula quando acabou abatido no escândalo do
mensalão, acusado de ser o “chefe de uma quadrilha” que desviava dinheiro público
para a compra de apoio parlamentar. Na semana passada, enquanto na Bahia o
ex-ministro descansava na praia, em Brasília sua prisão era decidida não por
razões políticas ou ideológicas, mas por corrupção e formação de quadrilha. No
papel de réu, José Dirceu, por mais irônico que pareça, contribui mais uma vez
para revolucionar o País. A decisão do STF vira uma página de nossa história. A
ideia de que do lado de baixo do Equador os casos de corrupção terminam em
pizza e de que os poderosos não são punidos como os simples mortais pode estar
com os dias contados. Para isso, basta que em suas futuras decisões os membros
da mais alta corte de nossa Justiça ajam com o mesmo rigor com que julgaram o
mensalão.
Alertado por seus advogados, pouco depois de Joaquim Barbosa
anunciar a decisão do STF em Brasília, José Dirceu já havia abandonado o traje
de banho e tomava o caminho de São Paulo. Era tarde da noite quando desembarcou
em Jundiaí, a caminho de sua casa em Vinhedo, onde pretendia assistir à
reabertura do julgamento, na quinta-feira 14. Mais tarde, foi até seu
apartamento, no Ibirapuera, em São Paulo. Fiel a uma postura de lutar por seus
direitos e defender a própria inocência sem tomar nenhuma atitude que possa ser
vista como desafio à lei, seria conveniente a José Dirceu encontrar-se em seu
endereço residencial quando uma equipe da Polícia Federal tocasse a campainha,
o que se imaginava que poderia acontecer mesmo nos dias seguintes. Na tarde da
quinta-feira 14, o único pedido de José Dirceu aos advogados era o de que fosse
poupado de cenas constrangedoras, como o uso de algemas e a condução em
viaturas policiais.
Oito anos se passaram desde que o mensalão foi denunciado
pelo então deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), também com a prisão decretada
pelo STF. E, apesar da experiente bancada de defensores, todos os réus foram
colhidos de surpresa na semana passada. A bons observadores, não foi difícil
constatar que a medida foi aprovada às vésperas de 15 de novembro, aniversário
da República, aquela que tantos julgam ameaçada e outros supõem distraída.
Antes da quarta-feira 13, mesmo os tarimbados profissionais de direito não
faziam ideia da importância especial da sessão marcada para aquele dia. A
maioria das cadeiras reservadas a advogados, no plenário do STF, estava vazia.
Idem para as mesas e os computadores destinados aos jornalistas e também para
poltronas que acomodam estudantes que costumam ser anunciados pelo ministro
Joaquim Barbosa antes do início dos trabalhos. Depois que a defesa conseguiu,
há dois meses, a aprovação dos embargos infringentes, naquela que foi a
primeira derrota aberta de Joaquim Barbosa no julgamento, a impressão geral era
de que a Ação Penal 470 entraria em novo curso, favorável aos acusados. Em
função da natureza específica dos crimes de que são acusados, boa parte dos
condenados do núcleo político, com José Dirceu à frente, parecia ter ótimas
chances de escapar do regime fechado.
A decisão da última semana não muda essa percepção, mas aos
brasileiros permite a avaliação de que a impunidade não venceu. E, sob o ponto
de vista jurídico, pode encerrar a fase de boas notícias para os réus. Depois
que o STF aprovou a execução das penas por 11 a 0, a estratégia de procurar
retardar as decisões fica absolutamente comprometida. Agora, entendem juristas
ouvidos por ISTOÉ, as chances de os réus saírem vitoriosos em seus pedidos de
revisão parecem menores. A votação da quarta-feira 13 mostrou que ministros até
então considerados votos fiéis aos acusados podem perfeitamente se alinhar ao
relator do processo, ministro Joaquim Barbosa.
Os primeiros sinais de que os dias de José Dirceu em Itacaré
estavam para terminar surgiram na noite da terça feira 12, quando o novo procurador-geral
da República, Rodrigo Janot, divulgou um parecer sobre o julgamento. Janot
assumiu o posto em setembro, recebendo elogios até da banda jurídica do governo
Dilma Rousseff, convencida de que os tempos excessivamente politizados de
Roberto Gurgel e Antônio Carlos Fernando haviam terminado. Divulgado depois que
Janot teve um encontro reservado com Joaquim Barbosa, antes do julgamento, o
parecer desmentia essa visão e antecipava a proposta que o presidente do STF
iria apresentar de viva voz, no dia seguinte, durante a sessão. Janot trazia,
no parecer, a ideia de pedir a prisão de todos os réus com condenações
definitivas – ressalvando, apenas, os crimes em que ainda se aguardasse
recurso.
Surpresos com o posicionamento do procurador-geral, os
advogados esperavam que Janot usasse a tribuna para sustentar sua tese. Isso
lhes facultaria o uso da palavra e qualquer decisão levaria ao menos cinco ou
seis sessões para ser tomada. Na prática, imaginavam levar a discussão apenas
para depois do recesso do fim de ano. O que eles não esperavam é que o
procurador permanecesse em absoluto silêncio. Diante dos protestos dos
advogados da defesa, queixando-se de que não era correto serem recebidos com
uma medida de surpresa, à ultima hora, o ministro Ricardo Lewandowski solicitou
que fosse dado o prazo de cinco dias para que todos debatessem a questão. “A
surpresa num processo jurídico não é compatível com o ordenamento legal de um
regime democrático,” disse o ministro, mais tarde, falando à ISTOÉ. Lewandowski
acabou derrotado por 9 a 2.
Da mesma forma que o Supremo ainda elaborava, na semana
passada, os últimos cálculos sobre as penas de cada condenado, estavam em curso
os preparativos para recebê-los. Numa primeira fase, o plano é reunir todos
eles numa ala especial no presídio da Papuda, em Brasília, que costuma receber
políticos que cumprem penas provisórias em casos de corrupção apurados em
sucessivas operações da Polícia Federal. Nos últimos anos, 150 agentes
penitenciários foram treinados e integram um grupo que deverá cuidar dos
condenados da Ação Penal 470 assim que as guias de prisão começarem a ser
cumpridas. Geralmente, os pedidos de prisão são direcionados aos órgãos
estaduais de execução. Como o Supremo é uma corte nacional, Joaquim Barbosa
optou por centralizar no Distrito Federal a primeira fase de apresentação dos
réus.
Os condenados devem chegar a Brasília de avião e ser
entregues às autoridades penitenciárias do Distrito Federal. Seu destino é uma
ala composta por dois blocos independentes, com sete celas cada uma. Os
condenados terão escolta, por serem considerados presos “com visibilidade”, o
que implica não apenas a curiosidade maior dos meios de comunicação, mas também
eventuais problemas de segurança. A rotina de cada preso na Papuda dependerá,
inicialmente, dos despachos do juiz Ademar Silva de Vasconcelos. Cabe a ele
decidir se o preso pode ou não ter televisão, cela individual, receber
alimentação especial e esquema especial de visitas. De forma discreta, o juiz
tem sido assediado por advogados procurando assegurar o melhor conforto aos
condenados.
A passagem por Brasília pode ser definitiva ou provisória.
Dependerá, na verdade, da disposição de cada preso. Aqueles que solicitarem
permanecer na capital federal terão direito a fazê-lo. Mas a legislação reserva
às pessoas privadas de liberdade o direito de solicitar transferência para uma
área próxima de seu domicílio. A palavra final é sempre do juiz encarregado da
execução penal, mas essas solicitações costumam ser atendidas.
Na agenda do Supremo estão vários casos de corrupção
envolvendo figuras importantes da República. Entre eles há o mensalão tucano e
o mensalão do DEM, por exemplo. Daqui para a frente, portanto, os ministros do
STF terão oportunidade de provar ao País que a intolerância com os desvios de
conduta dos poderosos e o ataque aos cofres públicos seguirão merecendo rigor
idêntico ao da AP 470.
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