Artigo de Fernando Gabeira, O Estado de S.Paulo
Depois de um duro dia de trabalho, liguei a TV para assistir
aos debates no Supremo. Sou amarrado em debates. Sinto falta deles no Brasil de
hoje.
Como não se fazem mais, qualquer coisa me diverte. Dormi num
sítio em Olhos D'Água e ouvi um velho rádio de pilha na escuridão do Cerrado.
Às vezes os locutores diziam bobagens monumentais. Eu ria um pouco e me sentia
mais próximo do sono. Engraçadas ou não, eram vozes humanas chegando pelos
ares, fazendo-me companhia naquela solidão que antecede o primeiro cantar dos
galos.
Era fascinante ver os juízes debatendo algo que me parecia
lógico. Uma vez dada a sentença, as pessoas passariam a cumprir a sua pena,
exceto as que estavam pendentes de um recurso infringente. Gostei muito do
infringente, mas ouvi outras coisas mais interessantes, como reflexo
intempestivo. Fui um pouco mais longe na pesquisa para constatar que tempestivo
é comum na linguagem jurídica, é algo oportuno, que corre dentro de um ritmo
adequado.
Discutiram horas e constataram que estavam de acordo, ou
pelo menos reconheceram que estavam de acordo, embora ainda fosse preciso pôr
no papel a sua concordância. Pensei comigo: como discutem esses ministros!
Discutiram meses para chegar a uma sentença e agora discutem horas para definir
se é para valer ou não. Devem estar cansados e creio que os deixarei em paz nos
próximos meses, com a devida gratidão pelos verbos e adjetivos que
acrescentaram ao meu conhecimento.
O processo foi tão arrastado que, ao se concretizar, deu a
impressão de algo já visto, uma reprise. José Dirceu e Genoino apresentaram-se
com o punho erguido. Já escrevi sobre esse gesto, pensei. Nada tenho a
acrescentar. No passado foi o símbolo da resistência comunista, chegou a roubar
a cena numa Olimpíada. "Por que, então, o punho erguido?", perguntou
um homem na rua. Disse-lhe que, no meu entender, a cadeia é muito difícil de
suportar. Entrar na cadeia pensando que cometeu algo pelo bem do povo sempre
ajuda a absorver a monotonia e o desconforto da prisão. "Mas não são
inocentes", observou o interlocutor. Como quase todos na cadeia,
arrematei. Quem visita um presídio constata que a maioria se diz inocente.
"E as regalias?", questionou. O que são regalias
senão obter algo que os outros não conseguem? A pena mais dura é a supressão da
liberdade, ainda que em prisão domiciliar. Filmei as celas que lhes seriam
destinadas na Papuda, cubículos frios, sem vestígios de nenhuma regalia.
A entrada na cadeia de dirigentes do PT, num sistema
penitenciário como o do DF, administrado pelo próprio PT, será uma experiência
singular. Estamos muito longe das condições de cadeia suecas. Mas longe também
do nível civilizatório que nossas possibilidades autorizam.
Homens que conduziram o País em determinada época são
obrigados agora a conhecer uma dimensão que ignoraram. Com a experiência podem
oferecer ao próprio partido um modelo de reforma que desarme a bomba-relógio
que construímos, com nosso silêncio, para as novas gerações. Mas no momento
nada indica que seguirão esses passos. É hora de negação.
Será difícil para um partido no poder com dirigentes presos
fingir que a prisão não existe, que não cai água da goteira, que esse amontoado
de gente em nossas cadeias não configura superlotação. A realidade vai acabar
se infiltrando por alguns poros, mas o PT seguirá montado numa tese fantasiosa
que talvez nem consiga abalar, nas eleições, sua pretensão de poder prolongado.
Que abandonem a realidade é problema deles. O nosso é
testemunhar o desfecho de uma aventura histórica, amparada no conceito de que
os fins justificam os meios. Reconhecer isso é deixar a casca de uma esquerda
autoritária e aceitar amplamente a democracia, sem se sentir dotado de uma
causa superior a ela e, portanto, podendo atropelá-la.
Reflexo intempestivo, para mim, é o Sol saindo subitamente
da nuvem, mergulhando o objeto numa luz contrária que enche de aberrações
violeta e lilases as nossas lentes. Mesmo nesses casos o Sol contrário não
consegue ofuscar o objeto. Um pequeno rebatedor de fundo branco devolve à cena
a luz do próprio Sol.
Esse rebatedor é o processo do mensalão, que foi julgado
abertamente na TV e passou a ser visto como a semente de um novo tempo, em que
a justiça se faz mesmo para os poderosos e todo o aparato jurídico que
conseguem mobilizar. Você pode ver isso como obra de uma elite reacionária.
Sinceramente, a História não vai registrar o episódio assim. Para grande parte
dos brasileiros, a roda moveu-se. Para muitos, no último fim de semana
estivemos mais perto de uma República.
A decisão do Supremo confirmou a ideia que tinha do
episódio. Restava apenas acompanhar, pelos inúmeros debates, o processo por
meio do qual a democracia brasileira iria metabolizar o grande pepino de julgar
a direção de um partido no poder, capaz, portanto, de indicar os próprios
ministros do Supremo. Foi uma tempestade tempestiva, para usar o meu novo
vocabulário. Mais rápida, traria perigosa inundações; mais lenta, encenaria uma
constrangedora comédia.
A tendência, no momento em que escrevo, é o debate sobre o
direito dos presos do mensalão dentro do sistema penitenciário. Se levar a uma
compreensão ampla da precariedade do próprio sistema, será um efeito colateral
positivo. O efeito mais decisivo, porém, ainda levará muito tempo: a passagem
definitiva da esquerda, que dirige o País, para a aceitação plena dos caminhos
democráticos, incompatíveis com o princípio de que os fins justificam os meios.
Tudo indica, por enquanto, que ela continuará dirigindo o
País. Mas para onde? A esfera da política desprendeu-se da sociedade e o vazio
se aprofunda. Negando ou aceitando a realidade do mensalão, deve prosseguir no
poder. O problema é sacudir uma herança do século passado, século de punhos
cerrados, em que nos sentíamos parteiros do futuro, capazes, pois, de ignorar
as regras do jogo.
Fernando Gabeira, jornalista e ex-deputado federal.
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