Antes de mais nada, impressiona a paixão. Aos 68 anos, Luiz
Inácio Lula da Silva não perdeu o vigor com que arengava à multidão reunida no
gramado da Vila Euclides no fim do anos 70. E nos momentos em que sustenta algo
capaz de empolgá-lo, ocorrência frequente, aperta com força metalúrgica o
pulso do entrevistador mais próximo, como se pretendesse transmitir-lhe
fisicamente sua emoção. Assim se deu nesta longa entrevista que o ex-presidente
Lula deu a Carta Capital. No caso de Mino, esta foi mais uma das inúmeras, a
começar pela primeira, em janeiro de 1978.
Carta Capital: O senhor enxerga alguma relação entre a Copa
do Mundo e a eleição? Se enxerga, por que e de que maneira?
LULA: Eu acho difícil imaginar que a Copa do Mundo possa ter
qualquer efeito sobre a preferência por este ou aquele candidato. Por outro
lado, se o Brasil perder, acho que
teremos um desastre similar àquele de 1950. Tenho uma frustração tremenda, e a
gente não sabe com que resultado psicológico para o povo. Em 50 jogaram o
fracasso nas costas do goleiro Barbosa.
CC: Em primeiro lugar do Bigode.
O Barbosa carregou por 50 anos a responsabilidade, e morreu
muito pobre, com a fama de ter sido quem derrotou o Brasil. É uma vergonha
jogar a culpa num jogador. Se o Brasil ganha, a campanha passa debater o futuro
do País e do futebol vai ficar para especialistas como eu.
CC: E as chamadas manifestações?
LULA: Ainda há pouco tempo a gente não esperava que pudessem
acontecer manifestações. E elas aconteceram sem qualquer radicalização inicial,
porque as pessoas reivindicavam saúde padrão Fifa, educação padrão Fifa,
poderiam ter reivindicado saúde padrão Interlagos, quando há corrida, ou padrão
de tênis, Wimbledon, na hora do tênis. Eu acho que isso é até saudável, o povo
elevou seu padrão reivindicatório. E é plenamente aceitável dentro do processo
de consolidação democrático que vive o Brasil. Eu acho que, ao realizar a Copa, o governo assumiu o
compromisso de garantir o bem-estar e a segurança dos brasileiros e dos
torcedores estrangeiros. Quem quiser fazer passeata que faça, quem quiser
levantar faixa, que levante, mas é importante saber que, assim como alguém tem
o direito de protestar, o cidadão que comprou o ingresso e quer ir ver a Copa
tenha a garantia de assistir aos jogos em perfeita paz.
CC: O povo brasileiro amadureceu e nós entendemos que o
resultado da Copa será bem menos importante do que foi em 1950. Mesmo que a
Seleção perca, não haverá tragédia. Deste ponto de vista. Efeitos sobre as
eleições podem ocorrer em função das chamadas manifestações.
LULA: Tenho certeza
de que a presidenta Dilma e os governos estaduais estão tomando toda a
responsabilidade para garantir ordem. Com isso podemos ficar tranquilos, é questão
de honra para o governo brasileiro. O que está em jogo é também a imagem do
Brasil no exterior. De qualeur maneira, acho que não vai ter violência, e, se
houver será tão marginal a ponto de ser punida pela própria sociedade. Agora se
um sindicato quer fazer uma faixa “abaixo não sei o quê, 10% de aumento”, é seu
direito. Eu me lembro que disse ao ministro José Eduardo Cardozo, quando
começou a se aventar a possibilidade de uma lei contra os mascarados: “Olha,
gente, nem brincar com lei contra mascarados porque a primeira coisa que iremos
prejudicar vai ser o Carnaval, não os mascarados”. A Constituição e o Código
Penal definem claramente o que é o ordem e o que é desordem e, portanto, o
governo tem mecanismos para evitar qualquer abuso. Recomenda-se senso comum.
Nesses dias tentaram até confundir uma frase minha sobre uma linha de metrô até
os estádios. Em 1950, no Maracanã cabiam 200 mil pessoas, mais de duas vezes as
assistências atuais. É verdade, havia menos carros nas ruas, infinitamente
menos carros, mas também não havia metrô.
CC: De todo modo,
vale apena realizar uma Copa?
LULA: Discordo daqueles que defendem a Copa no Brasil
dizendo que vão entrar 30 bilhões, ou que geraremos novos empregos. O problema
não é econômico. A Copa do Mundo vai nos permitir, no maior evento de futebol
do mundo, mostrar a cara do Brasil do jeito que ele é. O encontro de
civilizações, o resultado dessa miscigenação extraordinária entre europeus,
negros e índios que criou o povo brasileiro. Qual é o maior patrimônio que temos
para mostrar? A nossa gente.
CC: Em que medida essas manifestações nascem do fato de que
houve uma ascensão econômica? Aqueles que melhoraram de vida reivindicam mais
saúde, mais educação.
LULA: Eu acho que não há apenas uma explicação para o que está
acontecendo. Precisamos aprender a falar com o povo, para que entenda o momento
histórico. O jovem hoje com 18 anos tinha 6 anos quando ganhei a primeira
eleição, há 14 anos quando deixei de ser presidente da República. Se ele tentar
se informar pela televisão, ele é analfabeto político. Se tentar se informar
pela imprensa escrita, com raríssimas exceções, ele também será um analfabeto
político. A tentativa midiática é mostrar tudo pelo negativo. Agora, se nós
tivermos a capacidade de dizer que
certamente o pai dele viveu num mundo pior do que o dele, e se começarmos a mostrar como a mudança se deu, tenho
certeza de que ele vai compreender que ainda falta muito, mas que em 12 anos
passos adiante foram dados.
CC: O governo não soube se comunicar?
LULA: Eu acho. Eu de vez em quando gosto de falar de
problema histórico, para a gente entender o que de fato aconteceu neste país.
Já disse e repito: Cristóvão Colombo chegou em Santo Domingo, em 1492, e em
1507 ali surgia a primeira faculdade. No Peru, em 1550, na Bolívia, em 1624. O
Brasil ganhou a primeira faculdade com dom João VI, mas a primeira universidade
somente em 1930. Então você compreende o nosso atraso. Qual é o nosso orgulho?
Primeiro, em 100 anos, o Brasil conseguiu chegar a 3 milhões de estudantes em
universidades. Nós, em 12 anos, vamos chegar a 7,5 milhões de estudantes, ou
seja, em 12 anos, nós colocamos mais jovens na universidade do que foi
conseguido em um século. Escolas técnicas. De 1909 até 2002, foram inauguradas
140. Em 12 anos, nós inauguramos 365. Ou seja, duas vezes e meia o número
alcançado em um século. E daí você consegue imaginar o que significa o Reuni ao
elevar o número de alunos por sala de aula, de 12 para 18. Ou o que significa o
Ciências Sem Fronteiras, o Fies: 18 universidades federais novas. Pergunta o
que o Fernando Henrique Cardoso fez? Se você pensar em 146 campi novos, chegará
à conclusão de que foi preciso um sem diploma chegar na Presidência da
República para colocar a educação como prioridade neste país. Nós triplicamos o
Orçamento da União para a educação. É pouco? É tão pouco que a presidenta Dilma
já aprovou a lei permitindo 75% dos royalties para a educação. É tão pouco que
a Dilma criou o Ciência Sem Fronteiras para levar 65 mil jovens a estudar no
exterior. É tão pouco que ela criou o Pronatec, que já tem 6 milhões de jovens
se preparando para exercer uma profissão. Isso tudo estimula essa juventude a
querer mais. Tem de quer mais. Quanto mais ela reivindicar, mais a gente se
sente na obrigação de fazer. Quem comia acém passou a comer contrafilé e agora
quer filé. E é bom que seja assim, é bom que as pessoas não se nivelem por
baixo. Eu sempre fui contra a teoria de que é melhor pingar do que secar.
Quanto mais o povo for exigente e reivindicar, forçará o governo a fazer mais.
O que é ruim? A hipocrisia. Nós temos um setor médio da
sociedade, que ficou esmagado entre as conquistas sociais da parte mais pobre
da população e os ricos, que ganharam dinheiro também. A classe média, em
vários setores, proporcionalmente ganhou menos. Toda vez que um pobre ascende
um degrau, quem está dez degraus acima acha que perdeu algumas coisas. A
Marilena Chauí tem uma tese que eu acho correta: um setor da classe média
braseira que às vezes também é progressista, do ponto de vista social, mas não
aprendeu a socializar os espaços públicos e então fica incomodado.
CC: Nós entendemos que o problema é apresentado pela elite
brasileira. Quem se empenha contra a igualdade?
LULA: Eu sou o mais crítico do comportamento da elite
brasileira ao longo da historia. Este país foi o último a acabar com
escravidão, foi o último a ser independente. Só foi ter voto da mulher na
Constituição de 34. Tudo por aqui resulta de um acordo, inclusive um acordo
contra a ascensão social. Na Guerra dos Guararapes, quando pretos e índios
quiseram participar, a elite disse “não, não vai entrar, porque depois que
terminar essa guerra vão querer se voltar contra nós”. Esta é a história
política do Brasil. Ocorre, porém, que a ascensão dos pobres levou empresas
brasileiras a ganhar como nunca. Não sou eu quem lembra – em 1912, Ford dizia:
“Quero pagar um bom salario para meus trabalhadores para que eles possam
consumir”. Por exemplo: pobre em shopping dá lucro. Muitas vezes os donos não
aceitam num primeiro momento, mas depois percebem que é bom. Tínhamos 36
milhões de brasileiros viajando de avião, agora temos 112 milhões.
CC: Notáveis avanços são inegáveis. Mas como vai ser daqui
para a frente?
LULA: Eu fazia debates mundo afora, com o Mantega, o
Meirelles, às vezes a Dilma. E eu dizia: esses ministros meus, eles falam da
macroeconomia, mas o que eles não dizem é que essa macroeconomia só deu certo
por causa da minha microeconomia. O que foi a microeconomia? Foi o aumento de
salário, foi a compra de alimentos, a agricultura familiar, foi o
financiamento, foi o crédito consignado, foi o Bolsa Família. Foi essa
microeconomia que deu sustentabilidade à macroeconomia. Na Constituição de 46,
quando o trabalho era o assunto, concluía-se: “ Não pode dar 30 dias de férias
para o trabalhador, porque o ócio o prejudica”. Chamavam férias de ócio. Agora,
as pessoas dizem que o Bolsa Família cria um exército de vagabundos. E o
futuro? Numa escada de dez degraus, os pobres só subiram dois, um e meio, ainda
falta muito para subir. Por isso eu tenho orgulho da presidenta Dilma, ela sabe
que muita gente vai se bater contra ela a assustar que, para controlar a
inflação e fazer o País crescer, é preciso ter um pouco de desemprego, arrocho
no salário mínimo, ou seja, que é preciso fazer o que sempre foi feito neste
País e que não deu certo. Então, o que o governo tem de garantir é o aumento da
poupança interna, mais investimento do Estado, mais junção entre empresa
privada e pública, mais capital externo para investir no setor produtivo. Para
tanto, é indispensável dar continuidade à ascensão dos mais pobres. Porque é
isso que também vai garantir a ascensão do Brasil no mundo desenvolvido, com
alto padrão de qualidade de vida, renda per capita de 20 mil, 30 mil dólares, e
até mais. O Brasil não pode parar agora. Está tudo mais difícil, mas temos
agora o que a gente na tinha há cinco anos, vamos contar com o pré-sal, daqui a
pouco.
CC: Temos um agronegócio muito exuberante, muito produtivo e
competitivo: é possível mobilizar essa capacidade para estimular a indústria de
equipamentos agrícolas?
LULA: Nós já temos uma indústria de equipamentos agrícolas
muito boa. Quando na Presidência, cansei de discutir com empresários que feiras
de agronegócio nós precisamos é fazer na Argentina, no México, Nigéria, Angola,
Índia. Temos de mostrar nossa capacidade nos outros mercados. Esta é uma área
na qual o Brasil está pronto, não só porque tem conhecimento tecnológico, mas
também porque tem capacidade de área agriculturável, terra, sol e água. Sem a
vergonha de dizer que exportamos commodities. Hoje, a commodity tem preço. O
que nós precisamos é produzir não só o alimento, mas a indústria de alimentos,
não só a soja, mas o óleo de soja.
CC: Permita-nos insistir: como vencer as resistências da
elite, atiçada pela mídia?
LULA: No movimento sindical, em 1969, comecei a negociar com
a Fiesp, certamente a elite era muito mais retrógrada do que hoje. Eu lembro
quando nós constituímos a primeira grande comissão de fábrica na Volkswagem nos
anos 80, nós fomos pedir a Antônio Ermírio de Moraes a criação de uma comissão
de fábrica na sua indústria química de São Miguel Paulista, e significava
trabalhador querendo mandar na empresa dele. Hoje tem uma classe empresarial,
mais jovem, que já compreende a importância da negociação coletiva. Mesmo
assim, permanecem setores retrógrados. Ainda temos coronel que mata gente por
este Brasil afora por briga de terra. Nesses dias a Nissan americana não queria
deixar seu pessoal sindicalizar-se por lá mesmo e eu tive de mandar uma carta para
o presidente da empresa. Mas voltemos à mídia.
CC: A mídia nutre essa elite?
LULA: Eu certamente não sou especialista nesta questão da
mídia e nunca tive muita simpatia dos seus donos. Toda vez que tentei conversar
com eles, cuidei de explicar que ao governo não interessa uma mídia
chapa-branca, como foram no governo Fernando Henrique Cardoso. Eu não quero
isso, não quero que tratem o PT como trataram a turma do Collor nos dois
primeiros anos do seu mandato. Agora, também é inaceitável a falta de respeito
com Dilma. Se querem falar mal, façam-no no editorial do jornal. Na hora da
cobertura do fato, publiquem o fato como ele é. Nunca liguei para o dono de
mídia pedindo para fazer essa ou aquela matéria, mas o respeito há de ter,
tanto mais por parte da comunicação, que é concessão do Estado. Respeito à
instituição, e acho que eles saíram de um momento em que lambiam as botas
ditadura e evoluíram para o pensamento único a favor de FHC, e contra o meu
governo e contra o da Dilma, e contra a presidenta com agressividade ainda
maior.
CC: E em termos de informação?
LULA: Quando eu cito os números da educação, por exemplo, é
porque nunca foram divulgados por esta mídia. É como se houvesse a obrigação de
omitir, sem perceber que com isso se desrespeita o próprio público, que lê,
ouve ou assiste. Nem o recente Ibope eles divulgaram. Nem comentaram a
inauguração da Rodovia Norte-Sul, que passaram três anos criticando. Há uma
predisposição ao negativismo, e isso contribui para uma desinformação da
sociedade brasileira. E uma questão é ideológica, se fosse econômica, eles
deveriam ir todo dia à igreja acender uma vela para mim, porque muitos estão
quebrados e se salvaram no meu governo. Eu estou com a alma tão leve, eu até
acho normal o que eles fazem. Vem esse metalúrgico, que a gente supunha
destinado a um fracasso total, e é um sucesso. Vem essa mulher aí, que a gente
achava um poste, e ela não é um poste. E essa mulher vai se eleger outra vez.
CC: Na verdade, o que está esmaecendo no Brasil e no mundo é
o espírito crítico.
LULA: Porque interessa uma parte da elite brasileira a
negação da política. O que vem depois é sempre pior, quando você nega a
política. A ditadura brasileira foi a negação da política. O que é muito grave,
porque, se você atravessa um momento sem nenhuma referência, sem ninguém em
condições de controlar a situação, o próprio Estado vai à deriva.
CC: Insistimos novamente: o governo não se comunica?
LULA: Vocês estão certos, não se comunica, eu tenho falado
para o Guido Mantega, para a Dilma: vendo como está o mundo hoje, a cada dois
meses o governo tem de fazer igual uma empresa com seus acionistas, que têm
fundos de pensão. Ou seja, você de fazer viagens e convencer o fundo de que sua
empresa é rentável e vale a pena investir. Então, a cada dois meses o governo
brasileiro tem de ir a Nova York, não para falar com aposentados brasileiros,
mas com o investidor. Já falei com o Itamaraty, com Bradesco, Santander, todos
se dispõem a articular os maiores debates brasileiros para mostrar ao mundo
realizações e potencialidades. A Petrobras tem de viajar a cada 30 dias para
onde tem investidor. Não podemos ficar por conta de um jornalista inglês que
copiou matéria de um jornalista que vive no Rio de Janeiro e fica procurando
matéria em jornal para se inspirar. O Brasil precisa reconhecer enquanto vira a
sétima economia mundial com viés de ser a quinta, que lá fora já não se fala
bem da gente. José Luis Fiori escreveu um artigo comparando Brasil e México
para acabar com o complexo de vira-lata de quem fala que o Brasil está pior que
o México. O que o México tem melhor que o Brasil? Eu quero que o México fique
cada vez mais rico, mas a comparação com o Brasil é inadequada, porque o Brasil
é maior que o México em tudo. Dias atrás, estava aqui com meu amigo Gerdau e
perguntei: como está o setor siderúrgico? E ele: não está muito bem. Perguntei:
quanto é que você está ganhando no Brasil? Somente aqui, respondeu. Perguntem
para o José Gomes da Silva, da Coteminas, onde ganha dinheiro? No Brasil. O
mercado interno brasileiro é uma benção de Deus que a elite não sabia existir,
eles nunca imaginaram que podíamos ultrapassar os 35 milhões de consumidores.
CC: Que chances há de mudar essa falha do governo?
LULA: Não é fácil, eu sei o que foram meu primeiro e segundo
mandatos. Tenho dito com a Dilma que não tem de dar ouvidos a quem fala que
gastamos muito com publicidade. Eu acho que, se foi anunciado um programa hoje,
e no segundo dia não houve repercussão, vai em rede nacional. O governo tem de
dizer o que a mídia não divulgou, porque se não disser, o silêncio se fecha
sobre o fato. Dois dias de tolerância, e coloca um ministro em rede nacional,
não precisa ir a presidenta todo dia. Mas não fiquemos nisso. O Marco
Regulatório tem de ser compreendido. Não é censura, queremos é fazer valer a
Constituição de 88, tanto mais quando entram em cena Facebook e companhia, eu
nem sei o nome de tudo. Existe o Marco Regulatório de 1962. O Franklin Martins
foi feliz ao observar: “Em 62, a gente tinha mais televizinhos do que
televisores”. Eu lembro que menino ia à casa do vizinho ver televisão, a gente
só podia sentar no chão, o sofá era do dono da casa e ainda ele pisava no dedo
da gente. Para assistir luta livre, tinha de gastar dinheiro no bar, o dono
cobrava. Hoje acontece essa revolução tecnológica e você não quer discutir sua
regulamentação? Então, o Marco Regulatório e a reforma política são dois temas
de ponta que o PT tem de assumir. Temos de convocar uma Constituinte própria
para fazer uma reforma política.
CC: O que seria esta Constituinte própria?
LULA: Não se destinaria a elaborar uma nova Constituição, e
sim discutir a reforma política, exclusivamente. O congresso tem de aprovar a
ideia do plebiscito, e na convocação você diz o que é. E ai, não faltam
recursos jurídicos para adotar a nomenclatura adequada. É insuportável governar
com o Congresso tomado por tantos partidos. É preciso ter critério para
organizar um partido, tem de haver cláusula de barreira.
CC: Este problema não resulta do fato de que os partidos
brasileiros nunca foram o intermediário necessário entre a nação e o governo?
LULA: O Brasil não tem tradição de partido nacional, a
tradição são tribos locais, com caciques regionais. Depois do PCB, o PT
tornou-se o único partido nacional, cuja atuação partidária a direção decidia.
Mas o PT erra quando começa a entrar na mesmice dos outros partidos. Erra
quando usa a mesma prática dos outros partidos. Eu não quero voltar às origens,
briguei a vida inteira para ser classe média e agora vou voltar a brigar. O PT,
tem que saber, criar esse partido não foi fácil. Lembro de alguém que vendeu
uma cabrita, que dava leite para amamentar o filho, para legalizar o PT. E até
hoje há gente que anda três, quatro dias de canoa para participar de uma
convenção. A gente não pode permitir que meia dúzia de pessoas deformem esse
partido, ele é muito grande. É um partido que o próprio povo dirige. Não é uma
coisa simples, nós temos de valorizar isso. Já disse na convenção do PT: quero
ajudar o PT a voltar ao seu leito natural. Se tem uma coisa que o PT tem de
notabilizar é voltar à sua tradição politica. É isso que dá autoridade moral e
força para a gente.
CC: Não é fácil manter a coerência na hora da coalizão...
LULA: Não é vergonha você repartir administração com outros
partidos, sempre que pastas sejam definidas na base da afinidade. A reforma
politica é a briga que nós temos de ter hoje. Não acho que tenha de ser da
Dilma. Ela é candidata, acho que a briga tem de ser de todo o partido. O Rui
Falcão tem sido de grande valia nessa luta. Agora vou fazer campanha pelo
Nordeste, essa é a contribuição que me cabe no momento. E, se eu fosse o
governo, ficaria ouvindo todo programa de rádio, de televisão, e o que não for
verdade, pedir direito de resposta. Utilizar a internet e não ficar chorando “a
Globo não me dá espaço”. A gente tem outros instrumentos para dizer o que quer.
Estou muito disposto, física e psicologicamente para rodar o Brasil.
CC: A campanha, assumir os palanques...
LULA: Assumir os palanques. Estarei com Dilma onde ela achar
conveniente estar. Preciso tomar muito cuidado, porque haverá na base aliada
interesses de que eu não vá, porque a Dilma não pode ir, ela é candidata e da
base aliada, mas eu tenho compromisso com o meu partido. Eu sei que isso vai
ser um problema, a gente vai ter de conversar e negociar muito. Estou feliz,
sabe por quê? Eu sempre achei que quem deixa a Presidência fica pensando: como
seu estarei daqui a algum tempo? Porque as pessoas vão esquecendo, você vai
perdendo a importância. Eu lembro que em 2002, 2006, ninguém queria o FHC no
palanque. Nem Serra colocou. Em 2010, Serra me apresentou como amigo dele e não
colocou o FHC. Então, eu me sinto feliz, eu estou bem, eu ainda tenho
consciência de que sou uma pessoa importante na política brasileira, e como
tal, direi que Dilma é a pessoa mais talhada para cuidar do Brasil.
CC: E essa história que a imprensa criou do “Volta Lula”?
LULA: O “Volta Lula” começou
já na época que eu era presidente, quando pediam o terceiro mandato. Eu,
graças a Deus, aprendi a ter responsabilidade muito cedo. E aprendi que, ao
aceitar o terceiro mandato, por me achar insubstituível, poderia permitir que
outros também achassem, com a possibilidade de alguém, algum dia, tentar o
quarto. Não é prudente brincar com a democracia. Cumpri meus dois mandatos, saí
cercado pelo carinho do povo. Se, em algum momento, tiver de voltar, posso
daqui a quatro anos. Mas não é a minha prioridade. Eu estarei com 72 e acho que
tem de ser gente mais jovem, com mais vigor físico e capacidade de administração.
Mas em politica a gente não pode dizer que não, nem sim. Nunca me passou pela
cabeça voltar. Em todo caso, minha relação com a Dilma é muito forte, e de
muito respeito e admiração pelo caráter dela. Bem formada ideologicamente e
muito leal. Nunca iria disputar sua candidatura.
Não faltou quem quisesse minha volta, mas quando o Rui
Falcão, botou em votação, deixei claro: “Quero que saibam, sou candidato a cabo
eleitoral da companheira Dilma Rousseff para o segundo mandato à Presidência da
República”.
CC: E quanto aos adversários?
LULA: Conheço o Eduardo Campos, é meu amigo, gosto dele
profundamente. Conheço o Aécio, ele não tem a mesma firmeza ideológica do
Eduardo, tem outro compromisso, é um representante mais afinado com a elite.
Mas a Dilma é a mais preparada. Fico triste que não conseguimos construir algo
capaz de manter o Eduardo Campos junto da gente. Mas era destino.
CC: E a Marina?
LULA: Eu gosto muito da Marina, como figura humana. Foi
minha companheira no PT por 30 anos, tenho por ela um carinho muito grande, mas
acho que, de vez em quando, comete equívocos na análise política dela, meio
messiânica. Imaginei-a candidata, e agora entra de vice. Nisso não consigo
entender a Marina. Mas não confundo relação de amizade com a minha decisão
política. Tenho amizade com o Aécio mais formal do que com o Eduardo e sua
família.
CC: Dilma ganha no primeiro turno?
LULA: A ganhar no primeiro turno por 51% a 49% prefiro
ganhar no segundo turno, com 65% a 35%. Reeleição é sempre muito difícil, mas
no segundo turno você pode consolidar um processo de alianças com a coalisão e
você é eleito com mais desenvoltura, e também permite fazer um debate mais
profundo. No primeiro turno todo mundo fala a mesma coisa, promete tudo para o
povo. Eu acho que a Dilma está tranquila. Se em 2002 a esperança venceu o medo,
acho que agora a esperança e a certeza do que pode ser feito pode vencer o
ódio.
CC: A campanha será sangrenta?
LULA: Pelas características dos candidatos, acho que não. De
resto, o resultado de uma campanha não define apenas vencedor e derrotados, é o
grau de politização da sociedade, é o gosto pela política, é perceber que
durante a campanha os candidatos aprenderam alguma coisa e deram um salto de
qualidade. Quando disputei com o Serra, nós tivemos uma campanha mais
civilizada do que com o Alckmin. Ele se apresenta como cidadão refinado, mas
foi de extrema agressividade.
CC: Qual seria o adversário mais provável para o segundo
turno?
LULA: Eu acho que, em um segundo turno, será tucano. O PSDB
tem base partidária mais organizada, governam São Paulo, Paraná, alguns estados
importantes no Nordeste, e tem mais tradição de palanque. Já o PSB tem pouco
palanque estadual, a campanha do Eduardo vai ser mais difícil do que em 1989.
CC: O Padilha, candidato petista em São Paulo?
LULA: O Padilha é um daqueles fenômenos. Eu disse outro dia
em Sorocaba ao Padilha: “Depois de quem o precedeu, Arruda Sampaio, Suplicy,
Dirceu, Marta, Genuíno, Mercadante, você é o melhor candidato de todos nós, o
mais alegre, o mais simpático, sua capacidade de comunicação com o povo é
fantástica, unificou o partido”. Mas é uma campanha difícil. Primeiro, porque
os tucanos têm uma base sólida em São Paulo, e há conservadorismo no estado e
isso dá quase uma garantia. Não sei se Paulo Skaf vai ser candidato, há dois
anos que faz campanha não como candidato, mas como presidente da Fiesp. Agora o
desafio do PT é ter os votos que o partido tem habitualmente na cidade, todas
as eleições.
CC: Fale da central de boatos a respeito do seu filho Fábio.
LULA: Ao mesmo tempo que sou defensor intransigente da
liberdade que temos na internet, acho que somos vitimas dessa liberdade, porque
o cidadão entra no seu quarto, seu escritório, e fala a besteira que quiser. Há
muito tempo vêm denúncias, outro dia mostram a sede da Esalq e disseram que era
a cada do meu filho, outro dia ele era dono da Friboi, um dia desses ele foi à
Itaipu com o Samec passear, daí um jornal disse que ele estava fazendo
negócios, inventaram que ele tem um jato. Conseguimos detectar o paradeiro de
dez pessoas, uma era do Instituto Fernando Henrique Cardoso, filho do
ex-ministro Graziano. Os envolvidos foram acionados, um veio prestar depoimento
e disse: “Mas eu sou eleitor do Lula, eu só citei, não sabia se era verdade,
mas coloquei”. Muitos pedem desculpas. O
Graziano veio aqui também. Quando, muito tempo atrás, eu fui contra a invasão
do Afeganistão pela então URSS, diziam que eu era da CIA, depois eu era visto
pela direita como o cara do Partidão. Isso me permitiu continuar percorrendo o
caminho do meio. Mas vale acentuar que nós chegamos à excrecência da
excrecência do comportamento humano. Um dia desses eu vejo O Que Sei de Lula,
um livro. O autor não conviveu comigo um único segundo para escrever a orelha
do livro. Fico pensando o que faço com um cidadão desse? Acabo percebendo que o
melhor é a desmoralização pela mentira. O Romeu Tuma Jr. não merece o
comportamento do pai dele. O pai dele foi um cidadão digno. Quando a minha mãe
estava para morrer, ele, meu carcereiro, me deixava sair da cadeia às 2 da
manhã para visitá-la. Então, quando um cidadão conta uma mentira dessa, o que
fazer? Processar? Acho que falta um pouco de senso de responsabilidade no
comportamento das pessoas. De verdade, falta reconstruir a estrutura social da
família. Quando eu era pequeno, tinha vontade de comer uma maçã embrulhada em
papel azul, e ficava diante da barraca olhando e olhando, e sabe por que eu não
pegava e não saía correndo? Para não envergonhar a minha mãe. Ela era a minha
referência de comportamento.
CC: Mas uma política social que conseguisse alcançar um
certo grau de igualdade, isso não recriaria automaticamente valores perdidos?
LULA: Há todo um conjunto de fatores viáveis, não concordo
com diminuir a idade penal e colocar mais polícia na rua para coibir a
violência. Isso não vai funcionar. Eu acho que, se houver mais gente na escola
e mais gente trabalhando, vamos caminhar no rumo certo.
CC: Seria correto dizer que há uma concepção errada da
polícia num Estado democrático. Trata-se de uma instituição absolutamente
necessária, mas muito maltratada, porque ela não é para reprimir, é para
prevenir. Será que não vivemos uma crise institucional dos poderes que haveriam
de constituir um Estado moderno?
LULA: Quando a gente fala em reforma, precisamos reformar
também o Poder Judiciário. É tudo muito lento. Mas a Justiça pede por uma
reforma, porque é justo exigir mais competência, é preciso ter mais estrutura
para chegar a um cargo na Justiça. Quanto à polícia, tenho uma observação. A
nossa polícia sabe que em muitos casos o crime organizado está mais preparado
do que ela. Todo ser humano tem medo. Há casos em que o policial tira a farda
para ninguém saber que ele é policial. Ele vai trabalhar com um pouco de medo,
e o medo faz você mais violento. Se você aborda o suspeito, já de revólver em
punho, caso este reaja, você puxa o gatilho. Como é que você resolve isso? Nós
cometemos um erro na Constituição, que foi dar muita autonomia aos estados para
que sua polícia se desvincule com muita autonomia da PM. Dá a impressão de que
os estados saberiam lidar com a criminalidade, mas não prática muitos estados
ficam reféns da própria polícia. Primeiro, seria preciso que os policiais se
formassem por cursos de inteligência, assim como se formam em tiro ao alvo e
arte marcial. Segundo, é preciso pagar melhor. Acho que, no caso da organização
da polícia, o problema está na Constituição de 88. Nas Forças Armadas, nós
liberamos 7 mil, 8 mil fardados por ano, que poderiam ser chamados diretamente
para a polícia. Mas não, têm de prestar concurso. É preciso rediscutir a
respeito. Sem deixar de partir do pressuposto de que nenhum governador quer
abrir mão do controle da polícia. Decisivo seria definir o papel de cada um.
Porque, quando um governador prende um bandido, ele gosta de aparecer na
televisão, mas, quando ele não prende, o governo federal é o culpado. Essa
ponderação explica-se a outros campos. A educação. Quem é que cuida? O governo
federal, estadual ou a prefeitura? E no ensino técnico? Saúde? Nós precisamos
definir tudo isso. Temos de repactuar os entes federados. Construir um pacto
federativo, não só a partir da discussão financeira, mas também de acordo com a
responsabilidade de cada um. Penso que no segundo mandato da Dilma terá de
fazer coisas novas, é importante promover debates que ainda não foram feitos.
Só se fala em política tributária, e ninguém quer política tributária. Eu
tentei implementar duas vezes, ninguém quis. Dilma tem de fazer um esforço
muito grande para destravar este país.
CC: Até que ponto o senhor pode influenciar Dilma na escolha
dos futuros ministros?
LULA: Eu não quero influenciar a Dilma. Faço política por
uma transferência de confiança. Eu confio na Dilma. Se for eleita, vai fazer
suas escolhas, vou torcer para dar certo. Se achar que ela está errada, vou dar
uns palpites. Se em algum momento ela resolver discutir comigo alguns nomes, eu
também não terei dúvidas em ajudá-la.
CC: Digamos que a presidenta não queira ouvir ninguém, quem
quer que seja.
LULA: Não existe isso.
CC: Admitamos uma sugestão não solicitada: “Este cara é
muito bom”.
LULA: Vamos supor que a Dilma seja eleita e eu resolva
indicar o Belluzzo. E ela falasse ”não”. O que iria acontecer? Ia ficar um
arranhãozinho na nossa relação de amizade. Dai eu preferir não indicar. É mais
saudável, nem eu nem ela teremos decepções. Agora, se o partido vier discutir
comigo quais nomes vai indicar, eu direi o que acho a respeito. Com ela, não. A
não ser que a escolha me pareça absurda e então não hesitarei: “Este é
problema”.
CC: Como analisar o avanço na relação dos BRICS?
LULA: Neste mundo globalizado a gente tem de procurar
parceiros. Acabou o tempo em que o mundo pobre esperava tudo da Europa e dos
Estados Unidos. Então, eu penso que o Brasil tem de fortalecer as suas
relações. Eu sou da tese de que a gente tem de criar um colchão de proteção do
Brasil em suas relações externas, do ponto de vista estratégico, do ponto de
vista da segurança, econômico, do ponto de vista estratégico do desenvolvimento
científico-tecnológico. Porque quem já
tem não quer repartir com a gente.
Por isso o Brasil há de fortalecer cada vez mais sua
participação, sobretudo na América do Sul. E ter aqui, na América do Sul, algo
muito forte na área do comércio e da interação das nossas empresas. Ter
empresas fortes e bancos desenvolvimentos fortes. O BNDES tem de arcar com um
papel mais importante e a gente tem de construir o Banco Sul. Acho que temos de
fazer o mesmo com a África, porque agora, no século XXI, a África dará um salto
de qualidade.
E com os BRICS, precisamos tomar decisões políticas. Nós
somos uma espécie de pêndulo do planeta Terra, então não podemos ficar
dependendo do dólar para fazer negócio. Temos de construir, e não esperar que o
mundo construído no século XIX, no começo XX, venha nos salvar. Nós podemos
fazer a diferença. Eu acho que esse acordo da Rússia com a China, esse negócio
do gás, foi um tapa com luva de pelica na cada da Aliança do Atlântico. Acho
que os BRICS devem funcionar como uma espécie de segurança na relação de cinco
economias importantes. Por que eu falo isso? O Mercosul, quando cheguei à
Presidência, não valia nada. A Alca e que estava na moda. Nós não implantamos a
Alca e o Mercosul passou de 10 bilhões para 49 bilhões de fluxo de comércio
exterior. A América do Sul não valia nada, o Brasil não conversava com ninguém,
ninguém conversava com o Brasil.
CC: Não é do interesse das elites que esses dados apareçam.
LULA: O Brasil é o primeiro produtor, e primeiro exportador,
de carne processada, suco de laranja, tabaco, o segundo de soja. Tudo que você
imaginar, o Brasil está entre os cinco do mundo. Vamos gostar deste País!
Entrevista exclusiva publicada na revista
Carta Capital, edição
802 de 4 de junho de 2014, a Luiz Gonzaga Belluzzo e Mino Carta.