Artigo de Fernando Gabeira
Foi lançada nos EUA a primeira marca global de maconha: a
Marley. É uma homenagem a Bob Marley. Os empresários prometem honrar Marley com
um produto à altura de seu passado e talento. É um caminho diferente do
uruguaio. Em Montevidéu, senti que a posição do governo era a de controlar o
comércio. Algo como os suecos fazem com o álcool, distribuindo-o em armazéns
estatais. Sinto saudade do velho deputado mineiro Elias Murad. Ele é contra a
legalização e fizemos centenas de debates sobre o tema, estimulados pelo
governo que queria sentir o pulso da sociedade.
Tanto discutimos que ficamos amigos. Se Elias faltasse a um
debate, seria capaz de substitui-lo com todos os seus argumentos. Da mesma
forma, ele sabia de cor o meu discurso. Lembro-me do período com certa ironia,
por acreditar, naquela época, que debates como os nossos iriam abrir caminho
para uma decisão nacional. Preocupado com a produção do café em Minas, Elias
fez um projeto determinando uso do café na merenda escolar. A pequena concessão
à cafeína foi a única brecha que encontrei na sua cruzada antidroga.
A cafeína na virada do século XX ainda era vista com
suspeição. A própria Coca-Cola só conseguiu superar as reservas, quando num
genial golpe de marketing associou seu produto ao Papai Noel. Olho para trás
sorrindo por algumas razões pessoais. Quase todos os problemas que levantamos
acabam sendo engolfados pelo capitalismo. Na década dos 60, rasgaram-se muitos
sutiãs, mas o que estava destinado a revolucionar o sexo no planeta era a
pílula anticoncepcional.
De novo, no início da década dos 80, toda a pregação sobre a
política do corpo também acabou absorvida pelo capitalismo, através de centenas
de academias de ginástica, produtos esportivos, complementos alimentares,
cirurgias plásticas e tantas coisas mais. O próximo passo é a conquista do
cérebro com implantes que ampliem a inteligência e uma entrada de USB na nossa
nuca.
A maconha, depois de anos de proibição, também cai no
circuito capitalista. A legalização em sucessivos estados americanos acabou
propiciando a exploração industrial. O próprio milionário Warren Buffet
mostrou-se disposto investir na cannabis. O financista George Soros financiou
uma campanha pela maconha legal, na Califórnia. A maioria do povo brasileiro é
contra a legalização. Disso, Elias e eu, sabemos bem. Recentemente, uma
pesquisa indicou que a maioria é contra até o uso medicinal, o que não deveria
impedir o curso da legalização, nesse caso particular.
Se perguntássemos à maioria se é contra o uso medicinal da
morfina, talvez respondesse sim, exceto aqueles que sentiram muita dor ou viram
entes queridos sofrendo. Tenho grande respeito pelos que defendem a proibição
da maconha e, em certos casos, como o do velho Elias, mais que respeito,
admiração. No entanto, as coisas tornam-se mais complexas com o tempo. A Marley
será exportada para países que permitem o uso. Provavelmente chegará ao
Uruguai. O Paraguai já exporta maconha ilegal tanto para o Brasil como para os
próprios uruguaios.
O cenário dos próximos anos indica que a Marley pode chegar
ao Brasil, escondida, como chegam tantos produtos legais fugindo dos impostos.
Pode continuar chegando via Paraguai de forma ilegal como chega hoje, ou mesmo
surgir numa versão falsificada, como tantas marcas de uísque.
A maconha legal abre também o campo para a produção do
cânhamo, uma canabis com baixo teor de THC, usada hoje em centenas de
aplicações industriais. Resistir à legalização além da posição moral ganhará os
contornos românticos da resistência à abertura de um novo campo ao capitalismo.
No fim do século passado, escrevi um livro sobre a maconha.
É apenas um rascunho. O processo evoluiu tanto que se me encontrasse hoje com
Elias iria propor um café bem forte para avaliar o quadro. Gostaria de escrever
a história da maconha, como acho que deveria ser escrita a história da cafeína
e da nicotina que, combinadas, deram um grande impulso à fase industrial. Um
cafezinho e um cigarro sempre foram um estímulo ao trabalho. No caso do
cigarro, com um grande preço em vidas humanas e recursos materiais. A
ignorância é uma droga pesada. Embora existam muitos livros, o impacto dessas
substâncias na história humana ainda precisa estudos detalhados. A cocaína, por
exemplo, é elemento vital para a compreensão da trajetória da Colômbia.
Mas o tempo passou, outros temas capturaram minha atenção. A
marcha do capitalismo não depende tanto de minha energia intelectual. Toda vez
que escrevo sobre maconha, lembro-me de Elias Murad que, no passado, me deu um
livro sobre a toxicidade silenciosa da erva, com uma carinhosa dedicatória. Os
males que a maconha traz ainda são discutíveis. Elias talvez se recorde de meu
esforço para convergir: a maconha mata, certamente, se um pacote de cinco
quilos cair do décimo andar na cabeça de quem passa.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 07/12/2014
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