Artigo de Fernando Gabeira
Infelizmente, não é simples assim. Nem todos os que acham os
cortes necessários têm a mesma opinião sobre sua hierarquia e seu desenrolar.
Por onde começar os cortes, por cima ou por baixo? O plano mesmo para cortar
gastos só foi anunciado nesta semana. Assim mesmo, sem os detalhes para uma
análise.
O início apontou um caminho de cortes que começa por baixo.
Desempregados, viúvas, pensionistas e pescadores. Um espectador desavisado pode
concluir que para seus modestos bolsos escoa nosso tesouro. O governo diz que
fará economia de R$ 18 bilhões, corrigindo as distorções desses programas.
Será? Os pescadores, por exemplo, não são culpados. A causa da distorção aí foi
um esquema político religioso que distribuiu carteiras com objetivo eleitoral.
Começar pelo alto, dando aos mais pobres um tempo maior de adequação,
é uma posição a ser considerada. Acontece que a esquerda foi nocauteada pela
realidade, não tinha um plano próprio. Mergulhada no mundo maravilhoso da
propaganda, não podia admitir essa tarefa no horizonte.
Um programa de cortes envolve muitos interesses. Os
deputados votarão nas medidas que atingem viúvas e pescadores. Mas não movem
uma palha para racionalizar os custos de sua própria máquina. Nem abrem mão das
emendas parlamentares, sobretudo numa crise. Há uma década se fala na
necessidade de economizar em viagens e diárias, com tecnologia da comunicação.
Agora descobriram a pólvora. Quanto não se perdeu nessa recusa de encarar a
modernização? E os funcionários que são inúteis e foram contratados apenas por
política? Têm até nome próprio no idioma nacional: aspones, assessores de porra
nenhuma.
Dilma não falou do papel do Brasil no mundo, exceto como
parceiro comercial. No momento não temos uma visão clara. Só a partir dela
poderíamos definir quantas embaixadas teremos. Um grande número de embaixadas
parece projetar um papel de importância no mundo. Mas, quando algumas delas não
têm o que fazer e nem recursos para funcionar, revelam o contrário da imagem
desejada. Imensas e quase sempre inúteis verbas de propaganda do governo são
pouco questionadas. Existem projetos proibindo, mas nunca chegaram à agenda.
Dilma pareceu incomodada por começar de baixo. Tanto que
forçou um desmentido na revisão das regras do salário mínimo. O centro da
expectativa agora é o Ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Todos afirmam que vai
no caminho certo. Mas seria interessante que fosse também um caminho
transparente. Costumam chamar Joaquim de “mãos de tesoura”. O apelido sugere
uma frieza mecânica que não é real quando se trata de cortar despesas. Há
lutas, contradições, acordos, compromissos — um processo político, enfim. Pelo
menos, tem sido assim em muitos lugares do mundo.
Desempregados, viúvas e pescadores perderam o primeiro
round, mas nem tudo era apenas distorção. Sabemos que haverá mudanças nas taxas
de juros do BNDES. É um importante movimento por cima. O BNDES financia o
Friboi, que financia o PT, preferencialmente. Se há dinheiro para financiar
partidos, por que pedir emprestado ao governo? É legal, mas não deve ser
considerado também uma distorção? A bolsa dos reis do gado é diferente. Não só
pelo volume, mas pela transparência.
O Bolsa Família tem o cadastro de todos os que recebem. Mas
quem sabe os números dos empréstimos do BNDES? É uma caixa que não se consegue
abrir. Não quero fazer um discurso demagógico pelas viúvas e pensionistas. Nem
acredito que minhas ideias devam prevalecer. Mas é preciso haver um debate
transparente para que possamos avaliar os cortes. E, quem sabe, contribuir com
eles.
A célebre frase “os últimos serão os primeiros” tem uma grande
diversidade de leitura. Podem ser os primeiros a se estrepar. Não custava nada
o governo ter se preparado para essa realidade ainda no ano passado. Alguns
dizem: se mostrassem mais realismo, perderiam votos. Como se fosse preciso um
certo grau de embriaguez para alcançar a vitória.
Depois das férias, vamos ver como se comportam os defensores
dos fracos e dos oprimidos. A realidade é delicada: um governo com 39
ministérios começa seu esperado plano de contenções pelas viúvas, pescadores e
desempregados. É difícil olhar para o próprio rabo. Vão dizer que o rabo é
muito curto: custa pouco diante de viúvas e pescadores.
Artigo publicado no Segundo Caderno do O Globo em 11/01/2015
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