Artigo de Fernando Gabeira
“O Brasil é de uma fidelidade a si mesmo enorme. Muda para
não mudar. É metade corrupção, metade incompetência”. Esta frase do historiador
Evaldo Cabral de Mello define nossos principais problemas. Mas ele, que é um
grande historiador, deve concordar também que existem pessoas talentosas,
grupos capazes, ilhas de excelência no Brasil. Aqui no Rio aconteceu algo
interessante. Liderado pela professora Suzana Herculano-Houzel, um grupo de
pesquisadores brasileiros fez importante descoberta sobre o córtex cerebral.
O resultado da pesquisa foi publicado na revista “Science”.
O estudo brasileiro desfez um mito sobre o córtex e sua relação com os
neurônios. Um feito mundial. O grupo liderado por Suzana, no entanto, trabalha
numa universidade em crise e ela colocou dinheiro do próprio bolso para comprar
reagentes. Se quiser avançar em sua pesquisa, o grupo talvez tenha de escolher
o caminho do aeroporto. A ilha de excelência corre o risco de naufragar no
oceano de incompetência e corrupção.
O Brasil subestima a ciência e a pesquisa. É uma escolha que
nos distancia do mundo. Deve haver mil razões para este fenômeno. Uma frase que
ouvi na televisão talvez dê uma pista: os asiáticos construíram fábricas, e os
latino-americanos, shoppings centers. De fato, muitas conquistas da ciência e da
tecnologia desembocam nas prateleiras das lojas. Mas esta não é uma escolha
acertada para o longo prazo. Falar em longo prazo no Brasil de hoje é quase
heresia. Estamos enredados nas armadilhas do cotidiano. A política é um nó, a
própria presidente evoca o seu impeachment e convida: venham me derrubar.
Não somos Macondo, o território mítico criado por García
Márquez, mas nossa política, às vezes, se aproxima do realismo fantástico.
Guardo alguns momentos na memória. Ulysses Guimarães, certa vez, cumprimentou o
corneteiro numa solenidade. Houve um certo zunzum. Será que caducou, deixou de
tomar o remédio diário? Mas eram momentos líricos. E para dizer a verdade,
entre tomar remédios e cumprimentar corneteiros, talvez a última seja a solução
mais branda. Esse lirismo já não existia mais nas intempéries de Collor: eu
tenho aquilo roxo, dizia ele num acesso de arrogância.
Quando Dilma começou aquela frase: precisamos comungar o
milho com a mandioca, percebi que estávamos vivendo mais um momento de realismo
fantástico. No dia seguinte, na rua, um homem me abordou e disse que a
explicação estava na dieta que Dilma faz para emagrecer.
Caetano Veloso escreveu um verso: “esse papo já tá qualquer
coisa/ você já tá pra lá de Marrakesh”. No auge da crise, parece que dentro de
Dilma mexe qualquer coisa doida. Mexe qualquer coisa dentro: numa outra
oportunidade, ela saudou o fogo e a cooperação como as maiores criações
tecnológicas da Humanidade. Pra lá de Teerã.
O filósofo inglês John Gray, que escreve interessantes
ensaios, passou pelo Brasil e disse sobre a Europa: é possivel viver sem
esperar que o mundo necessariamente melhore. Tudo bem. Nesse momento, no
Brasil, estamos aprendendo a viver com a certeza de que o mundo vai
necessariamente piorar. Dilma fez preleções sobre o fogo e a mandioca, mas é
incapaz de dizer uma frase, ainda que não tenha muito sentido, sobre a crise
nas universidades. Ela usou o slogan “Pátria educadora” como se usa um boné em
dia de sol. Esqueceu no armário, com as outras quinquilharias produzidas pelo
marketing.
Berço da filosofia ocidental, a Grécia passa por
dificuldades. Entre o ajuste financeiro e as últimas medidas de Dilma,
sobretudo a de cobrir parte do salário para evitar desemprego, há uma pequena
contradição. Ela diz que será moleza permanecer no poder. Acho que continua
saudando a mandioca. Não tem base política confiável, não consegue definir um
ajuste e é cercada de problemas que partem de três direções: TCU, pedaladas;
TSE, caixa dois; Operação Lava Jato, corrupção na Petrobras. Se ela conseguir
superar esses problemas, com 9% de aceitação popular, no auge de uma crise
econômica que produz desemprego, perda de renda, estarei saudando a mandioca.
Seria preciso combinar o milho com a mandioca, levar ao fogo
para cozinhar no caldeirão a receita que salve o barco. No momento, ele navega
rumo ao Triângulo das Bermudas. A comandante e seus marujos podem sumir nele. O
país é grande demais para isso. O que sei é que esses tempos de incerteza nos
atrasam. Não só o que acontece na universidades é desolador. Muitos projetos
estão paralisados à espera de uma definição. Num país em que a presidente
desafia a oposição a derrubá-la, quem vai fazer planos para o futuro? Ela mesma
nos convida a adiar projetos e esperar o desfecho de seu mandato. Dilma é um
manual ambulante da inabilidade política. Sua capacidade de complicar as coisas
talvez contribua para uma saída mais rápida. Mas, ainda assim, vivemos num
compasso de espera. É o tipo de situação que não pode se prolongar. Sair do
buraco em que nos meteram é grande tarefa nacional.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 12/07/2015
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