Da Época
Existem cidades assentadas sobre falhas geológicas, o que
aumenta a probabilidade de terremoto – casos de Tóquio, Los Angeles e Istambul.
Seus habitantes têm de se acostumar a pequenos sismos cotidianos e preparar-se
para a ocorrência de grandes tremores. Em sua relação com o mundo político, os
brasileiros vivem como os habitantes dessas cidades. Ocorrem terremotos todas
as semanas – e, depois deles, terrenos que pareciam firmes se tornam movediços.
Dois desses terremotos ocorreram neste início de agosto. O primeiro foi a
prisão de José Dirceu, na segunda-feira, dia 3. O segundo foi a rebelião da
base aliada do governo, na quarta-feira, dia 5, que se somou à divulgação de
uma pesquisa em que a presidente Dilma Rousseff aparece com seus piores índices
de popularidade.
A prisão de José Dirceu representou um grande baque para o
Partido dos Trabalhadores. Primeiro, porque dirige os holofotes da Lava Jato
para o primeiro mandato do ex-presidente Lula, onde foram montados os esquemas
do mensalão e do petrolão. Revelações incômodas sobre a gênese da corrupção
podem ferir gravemente uma candidatura de Lula à Presidência no futuro. Segundo
porque, em meio às provas abundantes contra Dirceu, há sinais de enriquecimento
pessoal. Isso torna difícil defender Dirceu junto à militância. Quando foi
preso no mensalão, Dirceu deixou-se fotografar erguendo o punho cerrado – no
gesto que os Panteras Negras, militantes do movimento negro nos anos 1960,
tornaram célebre. Naquela ocasião, nas redes sociais, militantes petistas
apresentaram Dirceu como vítima de um “julgamento político”. Desta vez, o
partido abandonou Dirceu.
A semana atribulada de Dilma começou na quarta-feira, quando
a Câmara, em sua estratégia irresponsável de explodir o Orçamento, aprovou um
dos itens da “pauta-bomba”: a vinculação dos salários da Advocacia-Geral da
União, delegados civis e federais a 90,25% da remuneração dos ministros do
Supremo. Isso significa um gasto adicional de R$ 2,4 bilhões por ano, numa
época em que qualquer gasto adicional pode representar uma piora sensível da
situação econômica e dos cidadãos. É aquela situação em que os eleitos pelo
povo, por puro oportunismo, prejudicam os próprios eleitores. Na mesma
quarta-feira, dois partidos da base aliada, o PDT e o PTB, romperam com o
governo – que ficou, assim, ainda mais frágil. A semana de más notícias se
completou com a divulgação, na quinta-feira, de uma pesquisa em que Dilma
atingiu seu pior resultado: 71% dos brasileiros consideram seu governo “ruim”
ou “péssimo”, em comparação a 65% da pesquisa anterior. É o pior resultado da
série histórica de Dilma.
Existem muitas conexões entre os dois fatos, a prisão de
Dirceu e a crise do governo Dilma. A mais importante – e talvez menos aparente
– é que uma coisa é consequência da outra. Muitas das agruras do governo Dilma
foram plantadas durante o governo Lula, especialmente na época em que José
Dirceu era o todo-poderoso ministro da Casa Civil. Se o governo sofre hoje com
as investigações da Lava Jato, isso se deve a uma decisão tomada no início da
era Lula. Em entrevista recente, o deputado Miro Teixeira disse que participou
de uma reunião na qual estiveram quatro integrantes do governo. O tema da
reunião era como formar uma base de apoio político. Alguns, como o ex-ministro
da Fazenda Antonio Palocci, defendiam que deveria ser via convencimento,
negociando propostas com outros partidos – na mesma linha do que ocorrera com o
PFL, fiel aliado do governo Fernando Henrique. A proposta vencedora, no
entanto, foi a via “orçamentária”: a base de apoio seria negociada caso a caso,
com uso de dinheiro como argumento, de acordo com as “demandas” de cada partido
ou parlamentar. O cinismo em relação à democracia levou aos esquemas de compra
de apoio, mensalão e petrolão.
Se Dilma enfrenta problemas na economia, isso se deve a uma
mentalidade estatizante que começou ainda no governo Lula. Que, num primeiro
momento, ficou sob controle. Lula, pragmaticamente, adotou o arcabouço
econômico do governo anterior, cujos fiadores eram o ministro da Fazenda,
Antonio Palocci, e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. A partir
da crise de 2008, no entanto, criou-se a “Nova Matriz Econômica”, política
aprofundada no governo Dilma. A reboque da Nova Matriz, implantada na gestão de
Guido Mantega, o mais longevo ministro da Fazenda da era democrática, o governo
perdeu o controle dos gastos, tentou maquiar o deficit com as “pedaladas” e
jogou o país na crise que vivemos.
Por fim, se Dilma enfrenta animosidade no Legislativo, e tem
dificuldades para firmar um pacto nacional, isso se deve, em grande parte, à
arrogância que se instaurou no governo desde os tempos de Lula e Dirceu. Como
relembra o economista Ricardo Paes de Barros, Lula teve humildade, no início do
mandato, para implantar várias políticas do governo anterior – além do já
citado arcabouço econômico, Lula “importou” da era tucana o programa de combate
à pobreza criado pela equipe de Paes de Barros no Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea). Lula implantou o Bolsa Família com competência e
convicção. Os bons resultados desta e de outras políticas acertadas, aliados a
uma conjuntura internacional favorável, levaram os petistas a achar que a política
brasileira se dividia entre “antes” e “depois” deles – ideia expressa num dos
bordões mais arrogantes de nossa história política, o “nunca antes neste país”.
O crescimento brasileiro no período democrático, e a melhoria das condições de
vida da população, se deve a uma sequência de fatos que começa na Constituição
de 1988 e deve muito à estabilização econômica obtida no governo Fernando
Henrique. Dizer que tudo começou com o governo do PT equivale a alguém comprar
uma casa térrea, transformá-la num sobrado e maldizer quem construiu os
alicerces (Constituição) e a parte de baixo (governos anteriores) – como se
fosse possível erguer um segundo andar sem a existência do primeiro.
Corrupção na base política, má gestão econômica e a
arrogância que divide o país. Três erros do modo petista de governar que, hoje,
têm influência decisiva na crise. Neste momento em que urge criar um pacto
nacional, é hora de reconhecer tais erros – e aprender com eles.


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