Artigo de Fernando Gabeira
Estava alinhando alguns elementos de nossa absurda vida
política quando li a notícia: um anão fez um striptease na mesa de uma
delegacia, para celebrar o aniversário da escrivã. Delegacia de Entorpecentes,
guardiã da lucidez paulistana. Percebi como preciso abrir mais minha mente,
pois a realidade está cada mais distante do meu controle racional. De novo
surgiu a dúvida sobre se a ficção era o instrumento mais adequado para me
reaproximar dela. Os ficcionistas sabem que os personagens e o rumo da história
podem seguir um curso independente deles. E gostam disso.
Mas quando os personagens dirigem um país em profunda crise
econômica, política e moral há sempre um desejo de que se comportem de maneira
previsível. Ou que, pelo menos, suas oscilações sejam reintegradas num quadro
coerente. Ilusão.
Dilma reapareceu no 7 de setembro. “Se errei, isso é
possível”, disse ela, “mas vamos superar todas as dificuldades”.
Recentemente, Aloizio Mercadante admitiu que o governo
errou, ressalvando que outros governos também. Mercadante queria dizer que
errar é humano, ele erra, logo é humano. Imagino como tenha sido difícil chegar
a essa admissão. Dilma nem a isso chega. O erro é colocado no condicional. Ela
diz que é possível que tenha errado. A condição humana que em Mercadante é uma
certeza tardia, em Dilma é só uma possibilidade.
Imagino-me colocando a filosofia de Dilma em prática na vida
cotidiana. Sou um pouco distraído. As vezes quebro uma xícara. Como comunicar
isso em casa? É possível que tenha quebrado uma xícara.
“Claro que é”, responde minha mulher. “Você quebra sempre.
Além do mais, ouvi o barulho”.
Deve ser uma experiência singular, dizer que pode ter
cometido erros, olhar para fora do palácio e se ver representada num imenso
boneco com nariz de Pinóquio.
Não surpreende que use uma tática de guerrilha para se comunicar.
Ataca quando o adversário está disperso, foge quando ele se concentra. Diante
da tevê, o adversário está concentrado. Uma presidente que foge do encontro com
seu país, num momento de crise, é tão estranha como um anão dançando pela na
mesa da delegacia.
Quem poderia imaginar que, isolada por tapumes de aço,
perdida numa atmosfera política hostil, Dilma ainda fosse ter a ideia de
reduzir os poderes dos militares, nesse momento? Qual a ideia por trás disso?
Os militares estão muito quietos e é preciso agitá-los? Qual a vantagem de
poder tirar e aposentar generais? Eles não vão salvá-la, muito menos
derrubá-la.
Interessante como se deu atenção a alguns cartazes esparsos
pedindo intervenção militar no governo e como passa discretamente essa
tentativa do governo intervir na estrutura militar. Ela queria dormir no Brasil
e acordar na Venezuela. Com um simples decreto? Alguma coisa se passou na
cabeça de Dilma e não sei o que é. Creio que escrevi e escreverei esta frase
muitas vezes.
Ministros sob investigação, tesoureiros e ex-ministro
presos, polícia batendo na porta pelo Petrolão e verbas de campanha, profunda
crise econômica, diante de tudo isso Dilma admite que é possível ter havido um
erro. Houve mais que erros. A polícia não se interessa por erros. Houve crimes.
Mas os processos legais têm um ritmo e um curso autônomos. O momento de mudar
tem de ser decidido pela sociedade em sintonia com alguns políticos que ainda a
ouvem.
Com todo o respeito pela minoria que prefere afundar com
Dilma, o país precisa redefinir seu caminho com rapidez. Não por temor ao
apocalipse que não virá. Simplesmente para poupar a todos, inclusive as novas
gerações, de anos de retrocesso.
O governo gasta seu tempo pensando em impostos, como fazer
com que a sociedade pague pelos erros de Dilma e se torne ainda mais frágil
diante da tempestade econômica. Eu vi a CPMF nascer. No principio era só para a
saúde. Terminou comprando goiabada. Impostos temporários são apenas um
eufemismo. Dilma fez reflexões profundas sobre a casa e sobre a ponte. “O que é
uma ponte? O que é uma casa?”, perguntou ela no inicio de cada discurso.
Se aceitarmos impostos temporários, ela certamente virá com
essa: o que é o tempo? Como Santo Agostinho concluirá que é impossível
defini-lo?
Poucos comprariam um carro usado de um político como Richard
Nixon. Mas a confiança que os defensores de Dilma nos pedem é muito maior:
confiar a ela um imenso barco de refugiados para singrar o Mediterrâneo.
As tarefas que nos esperam são gigantescas. Da abolição da
escravatura à tomada de consciência ecológica, o Brasil sempre foi lento no
timing. Decidiu agora que precisa de um governo decente, que devolva com
serviços eficazes o dinheiro que arrecada. Quanto tempo vai gastar para
realizar essa aspiração tão simples e razoável? Esse é o enredo central da
novela em que os vilões custam a sair de cena,, apesar dos impulsos
autodestrutivos.
Artigo de Fernando Gabeira, publicado no O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário