Artigo de Fernando Gabeira
Li que a lama do primeiro Rock in Rio foi vendida por R$
185, num pequeno pacote. Se soubesse disso, não tinha lavado meus sapatos e a
calça que usei há 30 anos. Eles se afundaram naquela preciosa massa, quando
cobria a festa para a revista “Afinal”, dirigida pelo amigo Fernando Mitre.
Na mesma noite, vi na televisão uma reportagem afirmando que
o entulho das construções no Brasil daria para fazer 3,5 milhões de casas
populares e milhares de quilômetros de estrada. Se fosse reciclado, é claro.
Em estado de emergência, discutimos a crise do ponto de
vista de corte de despesas e aumento das receitas. Há um grupo do governo
dedicado às contas de chegar. O sonho é voltar a crescer. O crescimento parece
um cachorrinho que sumiu de casa e vai voltar um pouco mais magro, abanando o
rabo. Ao invés de apenas desejar as coisas como eram antes, por que não
refletir um pouco como poderiam ser melhores no futuro?
O país precisava também articular medidas inovadoras que, ao
mesmo tempo, produzam cortes de despesas. Quantos exemplos não podem ser
somados à possibilidade de reciclar o entulho? A seara do consumo individual é
complexa demais. Hoje o estilo de consumo está muito muito ligado a uma busca
de identidade. Consumidores da Harley-Davidson, por exemplo, identificam-se
tanto com a marca que tatuam o nome dela no braço.
No âmbito das contas de chegar, Dilma fez uma exposição
fantasiosa na ONU. Os vilões da crise brasileira são as commodities e a crise
externa. As commodities já caíram no princípio da década, e a crise mundial,
apesar da Europa, foi superada em 2011.
No dia seguinte, ela falou do futuro. Prometeu cortar
emissões, aumentar a eficiência energética. Mas o mesmo discurso, ouvido por um
estrangeiro, soa diferente para mim. Ela ignorou os ecossistemas fora da
Amazônia.
Para o público externo, o Brasil é muito identificado com a
Amazônia. Mas quem vive aqui sabe que é maior que ela. Numa recente viagem ao
cerrado mineiro, visitei o refúgio de vida silvestre do Rio Pandeiros. O rio é
o berçário da maioria das espécies do São Francisco. É protegido por uma
unidade de conservação de 310 mil hectares. Nos últimos anos, foram desmatados
50 mil hectares. Com a seca e os reflexos do El Niño, viajar pelo norte mineiro
é encontrar incêndios e ver fumaças ao longe. A pequena área que visitei
registra metade dos incêndios de Minas.
Falar em eficiência energética depois de tantos erros não
admitidos, só serve para nos entristecer pelo tempo perdido. Se houvesse mesmo
uma política, esse objetivo seria uma prioridade do BNDES. Que espaço haveria
para financiar a produção de carne de boi?
O consolo na crise é que, apesar da miséria do processo
político, a própria sociedade vai amadurecer. Não tenho ilusões sobre uma
revolução cultural, nem costumo usar o clichê “crise é oportunidade”. Vejo-a
como um percurso doloroso no qual podemos ou não achar a saída. Os políticos
decidem os caminhos do governo, mas a crise pode colocar também a velha
questão: qual a melhor vida para as pessoas? É uma discussão que transcende a
roubalheira e a limitação dos partidos, uma vez que as decisões de consumo são
tomadas em nível individual, fortemente influenciadas pelas relações
interpessoais. Não acredito em discursos culpabilizantes. Mesmo porque a
transgressão é um forte atrativo para o consumo. Mas um grande debate cultural
teria a chance de agregar valor simbólico ao consumo consciente.
Consumo consciente é modo de dizer, porque há sempre muito
de irracional no impulso da compra. Os publicitários falam também para essa
dimensão inconsciente. Não creio que seja manipulativo falar também para ela,
agregando valor emocional a um tipo de consumo que leve em conta as novas
gerações.
É difícil determinar o que é um consumo inteligente. De um
ponto de vista individual, o preço da lama do Rock in Rio compensou a
gratificação. E, além do mais, não trouxe nenhum dano ambiental. Mas quando
consumimos recursos partilhados como a água, as coisas ficam mais claras. A
água é a condição de vida no planeta e promessa de vida em Marte.
Na chamada economia maior, o horizonte é apenas retomar o
crescimento, o que implica numa fé quase religiosa no progresso. Intelectuais
do PT querem até seguir gastando a rodo, sem perceber que serão atropelados
pela espiral inflacionária.
Na dimensão do consumo, os mesmos hábitos podem nos levar a
uma freada brusca diante da escassez de recursos naturais. Em outras palavras,
a realidade vai sempre nos apresentar a conta.
Como responder a todas essas manifestações da crise de uma
forma coordenada? O governo só pensa em sobreviver. Dele não espero nada,
exceto sua queda. Mas do debate cultural, nesse sentido mais amplo, (qual a
melhor vida para as pessoas?), espera-se um pouco mais. O ritmo será lento e
irregular, mas é assim que o quadro se move em nossas cabeças.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 04/10/2015
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