Artigo de Fernando Gabeira
Quando voltava da padaria, empurrando a bicicleta, fui
abordado, de forma simpática, por um leitor. Por que escrevia apenas sobre
Dilma e o governo? Não é um simpatizante do PT, muito menos de Dilma. Mas
fixar-se nisto, de uma certa forma, reduz o vasto horizonte cultural, disse.
Respondi que concordava com ele. Mas, no momento, não conseguia me esquecer da
crise em que nos metemos. No caminho de casa, pensei: poderia estar escrevendo
sobre Clarice Lispector, Frida Kahlo ou mesmo Simone de Beauvoir. Para ficar
apenas nas que voltaram à evidência.
Clarice foi uma das admirações literárias da juventude, e
agora seus contos são reconhecidos nos Estados Unidos. Frida Kahlo, cuja casa,
transformada em museu, na Cidade do México, tornou-se um ícone popular. E a
velha Simone reapareceu no vestibular do Enem. Hoje tenho algumas divergências.
Mas seu livro “O segundo sexo” inspirou um artigo que publiquei no “JB”, na
década dos 1960, com título “Amélia não era mulher de verdade”. Isso posso
deixar para o próximo Enem.
Falar do Brasil e da crise tem prioridade para mim. Dilma, o
leitor que me desculpe citá-la de novo, é presidente. É impossível ignorá-la,
nesse momento. Felizmente, outros colunistas escrevem sobre a cultura mais
ampla. Isso me enriquece como leitor. Pessoalmente, no entanto, não consegui
achar a porta de saída da política.
É possível abandonar com gosto campanhas eleitorais, tramas
partidárias, gravatas e mandatos. Difícil para mim é esquecer a política,
sobretudo no momento em que o país, de uma certa forma, se desintegra. Escrevo
artigos depois de trabalhar ao ar livre, filmando temas como o desastre de
Mariana ou o surto de microcefalia. Isso faz sentido para mim. No entanto, à
noite, diante da tela em branco, não resisto ao desejo de buscar um sentido
maior, uma esperança. Sonho com o tempo de uma democracia madura, que me
permita cuidar de todas as outras coisas, não diretamente ligadas à política.
Isso não virá tão cedo. Terá de ser conquistado. No momento,
ainda há uma hesitação em encarar a realidade. A crise sanitária que vivemos é
uma das mais sérias de nossa história. Houve outras, mas as pessoas ainda não
viviam tão próximas e tão precariamente nas regiões metropolitanas. Estou
pronto para esquecer divergências quando se trata de uma frente para encarar as
novas ameaças que o vírus do zika revelou. Ou mesmo uma frente para encarar as
ameaças ambientais que o desastre de Mariana dramatizou.
Tudo se passa com um governo paralisado. Mesmo os que apoiam
Dilma sabem que é fraca. E não é apenas fraca como é fraco um governo que não
deu certo. É também vulnerável. Se o impeachment não vier com as pedaladas
fiscais, outros fronts vão se abrir. No TSE serão julgadas suas contas,
certamente entrelaçadas com os recursos do mensalão. Na Lava-Jato, Cerveró está
revelando como se comprou Pasadena.
Que tipo de arranjo o Brasil precisa encontrar para chegar a
2018 e inaugurar uma nova etapa, a partir das eleições presidenciais? Em
Brasília, para sentir o clima do impeachment de Dilma e a cassação de Cunha,
senti na verdade um clima de fim de mundo. Colhido por um tumulto e empurrões
em pleno trabalho de documentar a tentativa de votação da deputada Mara
Gabrilli. Ao vê-la indefesa na cabine, com meus óculos voando do bolso,
compreendi que a crise chegou aqui de forma devastadora.
Minha hipótese é de que o vírus que reduz cérebros em
Brasília nasce de uma doença fatal: distância do país, das pessoas que
trabalham e sofrem.
Depois do quebra-pau, alguns diziam: mas na Coreia do Sul
também brigam. No Estado Islâmico se fuzila, em alguns países da África amputam
clitóris, se o cérebro continuar se estreitando, chegaremos lá. Tudo isso é o
fruto da cultura dos últimos anos. A história passa a ser um álibi: no governo
anterior também se roubava. Agora é a geografia: na Coreia do Sul também
brigam.
Dia seguinte: chovia dinheiro no Recife, lançado das janelas
da Hemobras. O que seria isso? Uma forma de combater o mosquito atropelando-o
com maços de notas? Trabalham com o suprimento de sangue e acumulam fortunas. O
que fazer? Está no DNA do aparelho petista. Saio de Brasília com a impressão de
que, antes do carnaval, nada será decidido a respeito de Dilma e Cunha. Talvez
tenha sido por isso que alguns deputados no plenário cantaram a marchinha do
Japonês da Federal, aquele que aparece prendendo os corruptos em suas casas.
“Aí meu Deus, me dei mal, bateu à minha porta o Japonês da Federal”.
Lama jorrando das barragens, mosquitos roubando a chance de
plena vida a uma geração de brasileiros, rubro dinheiro do sangue jorrando
pelas janelas de Recife. Apesar disso, não perdemos o humor. Mas, às vezes,
bate uma tristeza. A experiência, no entanto, me consola. Na campanha das
diretas também entramos num ritmo morto, fomos derrotados na votação
parlamentar. Mas as diretas chegaram.
Como dizia Guimarães Rosa: “O que tem de ser tem muita
força”. Bem que podia ser mais rápido.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 13/12/2016
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