Artigo de Fernando Gabeira
O dia em que o primeiro senador da República foi preso é um
momento da História que me colheu em pleno trabalho. Soube da notícia no carro,
viajando de Linhares para Regência, na foz do Rio Doce. Conexões precárias.
Ainda assim, percebi que a maneira de manter o foco no trabalho era
interrompê-lo de hora em hora e perguntar: e aí? Delcídio foi preso com um
advogado, um banqueiro e um chefe de gabinete. Nunca se foi tão bem equipado
para a cadeia.
E aí? Senadores vão confirmar ou negar a prisão de Delcídio.
Com a experiência vivida, pensei: voto aberto, cadeia, voto fechado, liberdade.
O voto aberto é uma espécie de bafo na nuca. Desencadeia uma reação química
que, por sua vez, aciona o instinto de sobrevivência. Dependendo da dose,
funciona como o vinho quando se pega o microfone.
No impeachment de Collor era um tal de voto em nome do
Brasil, voto pela família, pelo futuro. Sabem que é o bafo na nuca, mas as
câmeras estão ligadas, é preciso escolher uma frase como se escolhe um terno
para o casamento da filha.
E aí? Planejavam uma fuga de Nestor Cerveró pelo Paraguai.
Pareceu-me no Rio Doce, diante dos peixes pulando desesperados com a lama
entupindo suas guelras, um plano brancaleônico. Pega o Cerveró, bota no avião,
tira o Cerveró de um avião, coloca em outro, escondem o Cerveró no fundo de um
veleiro e partem para a Espanha. Cristóvão Colombo às avessas, o mar devolveria
Cerveró.
E aí? O plano previa conversas com ministros. Isso preocupa,
pensei. Todos sabiam que iriam centrar no STF para destruir a Lava-Jato. O
próprio fatiamento dos inquéritos, que os ministros devem ter aprovado,
suponho, por uma questão técnica, era para a quadrilha uma parte do plano de
melar a Lava-Jato. Mas ficou claro que a Lava-Jato não vai morrer no Supremo.
No STF, vai soprar um pouco mais que bafo na nuca: um forte sudoeste, sei lá,
um tufão.
Depois do trabalho na foz do Doce, voltei às conexões
regulares: Delcídio vai ou não entregar todo o esquema criminoso? Não me
preocupo tanto. É um problema mais dele e da família. Mofar na cadeia ou dizer
o que sabe. Quase todos os segredos que se atribuem a Delcídio referem-se a
episódios conhecidos que, com ou sem ele, acabarão sendo desvendados. Na
verdade, todo o material já levantado e as delações que estão por vir bastariam
para derrubar 20 governos. É só investigar. Um indício de que há dinamite de
sobra foi a notícia de que a Andrade Gutierrez vai pagar R$ 1 bilhão de multa e
confessou suborno, entre outras, nos estádios da Copa. Apareceu e sumiu como se
fosse o relato de uma árvore caída, um automóvel que bateu no poste. A famosa
corrupção, que quase todos esperávamos na Copa do Mundo, tornou-se uma nota de
pé de página na sucessão de escândalos nacionais.
Fica cada vez mais claro: o sistema político brasileiro está
desmoronando. Vivemos uma crise econômica, política, ética e ambiental. Vivemos
também uma crise sanitária, com a tríplice epidemia que se abate sobre o país:
dengue, chicungunha e zika. O cerco policial ao governo bandido e seus asseclas
é muito fascinante. A sociedade tem um papel, obrigando ministros e
parlamentares a um recuo na cumplicidade com o capitalismo mafioso que associa
o PT e o PMDB a empreiteiras e banqueiros de rapina. Contemplar esse espetáculo
é limitado. As coisas estão desabando também no mundo real, do trabalho, da
vida cotidiana.
Por isso que os federais têm de andar rápido. É hora de
prender alguns dos nomes centrais da política brasileira. Alguns, como Eduardo
Cunha, já deveriam até ter cumprido parte da pena. Apesar de, finalmente, ter
aceito o pedido de impeachment.
O que se suporta no Brasil não seria tolerado facilmente em
nenhum outro país do mundo: crise econômica, desemprego, crise ética, mar de
lama sufocando rios, mosquitos devorando o cérebro de futuras gerações e uma
quadrilha cínica no poder.
As circunstâncias pedem um governo. Não é possível
atravessar o deserto sem nenhum rumo. O que fazer com as barragens perigosas,
como conter a crise sanitária, como recuperar a economia, abrir novas chances
no mercado de trabalho?
Há quem ache que faremos isso tudo com Dilma, alma penada
vagando pelo planalto central. E que Cunha prosseguirá no seu cargo, em nome da
estabilidade, roubando tudo o que restar pelo caminho. A obra dantesca seria
concluída com a candidatura de Lula em 2018. Para eles, candidato à
presidência, para nós, a xerife de cela.
Mañana. Um dos traços de nossa cultura é empurrar com o
barriga, deixar que a Dilma prossiga, Cunha presida, Lula fuja da polícia
fingindo que está em campanha. Muito brasileiramente, fomos caindo mais no
abismo por falta de energia para derrubar o governo, prender o braço político
da corrupção, quebrar a espinha de brilhantes empresários que escolhem o crime
como plataforma.
É tarde mas ainda é hora. Os desencontros de Cunha e do PT
acabaram abrindo uma nova fase.
Resta saber qual o seu ritmo.
Artigo de Fernando Gabeira publicado no Segundo Caderno, O
Globo, em 06/12/2015.
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