Da IstoÉ
O5 de outubro de 1988 foi um dia histórico para o País. Em
Brasília, caíam as primeiras chuvas finas, depois de uma estiagem de quase três
meses. As folhas pálidas dos arbustos retorcidos do cerrado começavam a ganhar
vida e cor, quando Ulysses Guimarães, em reunião do Congresso Nacional
convocada especialmente para a promulgação da nova Constituição, ergueu o
volume com os originais da Carta Magna e pronunciou as seguintes palavras: “A
nação quer mudar. A nação deve mudar. A nação vai mudar !”. O PMDB consumava,
ali, seu projeto de consolidação da democracia em nosso País. Entregava ao Brasil
a institucionalização do Estado Democrático de Direito. De lá para cá, o
partido, também dono de papel primordial nas Diretas, virou mero coadjuvante.
Contentou-se em ser apêndice do Planalto, embora o comportamento – por
fisiológico e muitas vezes oportunista – tenha lhe assegurado por anos a fio as
benesses e as regalias do poder. Hoje, um novo desafio se impõe ao PMDB. Como
dizia o ex-presidente da República Jânio Quadros, “o partido das antessalas
palacianas” trabalha para retomar o protagonismo de outrora. Quando mais uma
vez, para ficar no discurso eternizado por Ulysses, “a nação quer mudar”, o
PMDB mostrou, nos últimos dias, disposição e condição política para liderar o
País e resgatar em sua essência o velho partido das grandes causas nacionais.
Quem se apresenta como timoneiro da retomada peemedebista é
o vice-presidente Michel Temer. Na segunda-feira 7, ele empreendeu o mais
contundente gesto em direção ao rompimento com a presidente Dilma Rousseff.
Dizendo-se cansado de desempenhar o papel de figura decorativa da República,
Temer enviou uma carta a presidente em que a acusou de não trata-lo com
respeito, de desprezá-lo com assiduidade e de não confiar nele nem no seu
partido. No futuro, a carta poderá ficar na história como o marco da inflexão do
PMDB. E do próprio vice-presidente. Para entender melhor o significado do
movimento político de Temer, e do quão difícil deve ter sido para ele fazê-lo,
primeiro é preciso conhecer um pouco do seu perfil. Ao longo de sua trajetória,
o peemedebista notabilizou-se por ser um político pouco afeito a arroubos e a
indisposições. Discreto e polido, sempre atuou melhor nos bastidores do que em
meio aos holofotes. Em 2013, num lance de rara ousadia pública, traços de sua
personalidade foram expostos no livro de poemas “Anônima Intimidade”, subscrito
por ele. Na poesia “Exposição” disse: “Escrever é expor-se./ Revelar sua
capacidade/ Ou incapacidade./ E sua intimidade./ Nas linhas e entrelinhas./ Não
teria sido mais útil silenciar?”. Se poemas costumam ser a expressão da alma, o
vice-presidente deve ter tido boas razões para, desta vez, contrariando o que
escreveu lá atrás, considerar mais útil não silenciar.
O vazamento do conteúdo da carta a Dilma gerou mal-estar e
troca de acusações no governo. Na noite de quarta-feira 9, Dilma e Temer se
encontraram por uma hora para manter as aparências. Disfarçar as evidências do
litígio hoje irremediável. Como um casal que dorme em camas separadas, os dois
combinaram estabelecer, dali para frente, uma relação meramente institucional.
Na prática, não se aturam mais. Nem marcharão juntos. Pelo contrário. Temer
despiu-se de vez das vestes governistas para colocar a braçadeira de capitão do
impeachment, num processo fortalecido pelo seu gesto. No mesmo dia em que
enviou a carta para Dilma, o vice foi saudado de pé na Federação do Comércio de
São Paulo. Seu celular também não parou de tocar. A maioria, especialmente do
PMDB, o cumprimentou pela iniciativa classificada de “corajosa”.
A história republicana ensina que o distanciamento dos vices
costuma ser fatal para os titulares da Presidência. Afinal, como diz uma
expressão bastante usada nos EUA, o vice está a apenas “uma batida de coração”
da Presidência. Na República Velha, quando pelo menos três vices governaram,
Deodoro da Fonseca caiu em desgraça após uma ofensiva do vice Floriano Peixoto.
No fim da ditadura, o governo do general João Figueiredo começou a degringolar
quando o vice Aureliano Chaves resolveu compor a Frente Liberal com o
ex-presidente José Sarney e Marco Maciel, caciques dissidentes do PDS. Esse
movimento permitiu a formação da Aliança Democrática, que viabilizaria a
eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Com Collor e Itamar Franco, a
história se repetiu. O desfecho todos conhecem.
Em coerência com os acontecimentos do passado envolvendo os
vices e seus respectivos presidentes, a divulgação da carta redigida por Temer
foi determinante para sacramentar a derrota de Dilma na primeira batalha do
processo de impeachment. Na votação para definir os integrantes da Comissão
Especial, a chapa da oposição venceu por 272 a 199. O placar demonstrou que o
futuro pode ser sombrio para a presidente da República. Para evitar o
impeachment no dia em que o assunto for apreciado pelo plenário da Câmara, o
Planalto tem de ter ao menos 171 votos. Na semana passada, conseguiu uma margem
muito frágil. Imagine o deputado tendo de escolher se salva Dilma ou o seu
próprio futuro eleitoral em votação aberta ao vivo na TV para todo Brasil com
milhares de pessoas nas ruas e no entorno do Congresso?
Em mais um capítulo da contenda do impeachment, no dia
seguinte à derrota imposta ao Planalto pela oposição, o STF, por meio do
relator Luiz Fachin, suspendeu o rito do processo. Jogou a decisão para o pleno
da corte, ao entender que há controvérsias sobre se a votação, conduzida pelo
presidente da Câmara, Eduardo Cunha, precedida de bate-bocas e quebra-quebras,
deveria ter sido aberta ou secreta. Resta saber se o julgamento será realizado
ainda este ano. A oposição pressiona para um desenlace antes do recesso. “Não
me parece adequado que o Supremo entre em recesso sem que o Congresso resgate
seu poder de conduzir o processo. Se isso ocorrer, acho que haverá uma
incompreensão grande por parte da sociedade brasileira”, afirmou o presidente
do PSDB, senador Aécio Neves. O PMDB, de Temer, também reagiu: “A chapa branca
do governo perde e vai para o tapetão? O STF não vai cair nessa. Participam da
eleição, perdem e correm para o Supremo. Isso é golpe, golpistas”, disse o
deputado Geddel Vieira Lima (PMDB-BA).
Único partido de oposição não clandestino do período
militar, o MDB, antes ainda de se converter a PMDB depois do fim do
bipartidarismo, tornou-se durante a ditadura uma espécie de abrigo para todos
que discordavam do regime de exceção. Agora, novamente se apresenta como a nau
mais segura para aqueles interessados em desembarcar do governo Dilma e anseiam
por um pacto nacional para recolocar o País nos trilhos. Empresários e
lideranças políticas concordam hoje que só uma união entre diversos setores da
sociedade será capaz de tirar o Brasil da grave crise econômica e política em
que se encontra. Os ventos sopram na direção de Temer. Na sexta-feira 11,
minutos depois de o vice proferir palestra no Instituto de Direito Público de
São Paulo, o ministro do STF, Gilmar Mendes, disse: “Temer seria um ótimo
presidente do Brasil”. Para o ex-senador e líder histórico do PMDB, Pedro
Simon, um eventual governo Temer seria uma reedição da gestão de Itamar Franco,
sucessor de Collor. “No seu governo, Itamar não teve uma crise, um escândalo de
corrupção. Temer iria governar com todo mundo. Teria o mesmo estilo e a mesma
forma de Itamar”, defendeu Simon. Em dezembro de 1992, Itamar convocou uma
reunião com todos os líderes e presidentes de partidos e estabeleceu um governo
de unidade nacional. Os frutos seriam colhidos mais adiante com a criação do
Plano Real, responsável pela estabilidade da moeda e o fim da inflação.
Na década anterior, mais precisamente em 1982, portanto
pouco antes do fim do regime militar, o PMDB produzia seu primeiro projeto para
o País. Chamou de “Esperança e mudança” um arrazoado de 119 páginas, dividido
em quatro capítulos, elaborado pelos intelectuais desenvolvimentistas Luiz
Gonzaga Belluzzo, Carlos Lessa, João Manuel Cardoso de Mello e Maria da
Conceição Tavares. O primeiro parágrafo do documento lançado há 33 anos remonta
aos dias atuais e poderia muito bem ter sido escrito hoje: “O Brasil atravessa
uma fase crítica: a pior crise econômica e social desde os anos 30 coexiste com
uma profunda crise institucional. As estruturas do Estado estão carcomidas, a
política econômica está imobilizada, o governo carece de largueza de visão para
enfrentar o estado de desagregação crescente. O mais grave, porém, é a crise
política – o divórcio profundo entre a sociedade e o Estado, a ausência de
confiança e de representatividade”. O projeto chegou a ser avaliado por
Tancredo Neves, eleito presidente em 1985, mas pouco ou quase nada dele foi
implementado durante o governo Sarney.
Atualmente, o ideário do partido é distinto daquele
expressado pelos seus líderes na década de 80. Caso assuma o Planalto, por
exemplo, Temer cogita nomear Henrique Meirelles na Fazenda. Desenvolvimentista
à esquerda de Joaquim Levy e Antonio Palocci, ministros da Fazenda da era petista,
José Serra passaria ao largo da equipe econômica, embora seja cotado para um
cargo de relevo na Esplanada dos Ministérios. As linhas gerais do que o novo
PMDB pensa para o País estão dispostas num documento intitulado “Uma ponte para
o futuro”, rebatizado na semana passada de “Plano Temer”. O programa
desenvolvido pelo presidente da Fundação Ulysses Guimarães, Moreira Franco,
defende caminhos diferentes dos adotados pelo governo para tirar o País da
crise. O texto embute uma mensagem clara: o PMDB tem um caminho próprio. O
conjunto de propostas afirma que o Brasil se encontra em uma situação de grave
risco, numa profunda recessão sem data para acabar. A situação poderia estar
menos crítica, acrescenta o documento, se o governo não tivesse cometido excessos,
seja criando novos programas, seja ampliando os antigos, ou mesmo admitindo
novos servidores ou assumindo investimentos acima da capacidade fiscal. “Somos
o único partido que apresentou uma proposta para enfrentar essa que é a maior
crise econômica na nossa história: o Plano Temer. Achamos que ele deveria ser
debatido, discutido, quem sabe acolhido dentro do governo, mas não aconteceu. O
governo ficou calado. Agora, o PMDB está pronto para estar na comissão de
frente da política brasileira, e queremos participação geral, ampla e
entusiasmada de todos os militantes”, disse em entrevista à ISTOÉ, Moreira
Franco.
Em 1° de abril de 1966, o deputado Paulo Macarini, do MDB de
Santa Catarina, ocupou a tribuna do plenário da Câmara para anunciar a criação
do novo partido: “O Movimento Democrático Brasileiro, que se instalou ontem
nesta Casa, há de ser uma clareira que se abre nas trevas da vida brasileira”.
Hoje, 49 anos depois, a expectativa se renova sobre o PMDB.
Menos de 48 horas antes de ser conduzido à liderança do
PMDB, em substituição a Leonardo Picciani (RJ), o novo líder do partido na
Câmara, Leonardo Quintão (foto), se viu enredado numa questão que envolve a
nova lei de mineração e o escritório de advocacia Pinheiro Neto. O novo Código
de Mineração, que tem sido ainda mais discutido após a tragédia de Mariana,
cujo parlamentar é o relator, foi redigido e modificado em um computador do
Pinheiro Neto, que tem como clientes algumas empresas mineradoras, como a Vale.
Em entrevista, Quintão reconheceu ter sido auxiliado por Carlos Vilhena,
advogado do escritório. O conflito de interesses, se confirmado, constitui-se
em algo extremamente grave. Em nota, Vilhena admitiu que foi convidado por
Quintão a “contribuir com a redação do substitutivo”, mas garantiu que não o
criou nem o modificou. “Aceitei o convite na qualidade de cidadão e advogado
com mais de 25 anos de experiência na área mineral”, afirmou.
Reportagem de Sérgio Pardellas, colaboração de Eliane
Lobato
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