O “New York Times” revisou no domingo cinco livros que falam
de morte. O tema voltou às livrarias americanas. Na verdade, volta e
desaparece, com constância. Um desses livros, “Mortais”, de Atul Gawande, acabo
de ler. Ele é um jovem médico filho de um médico indiano, que acompanhou, além
da morte do próprio pai, outros processos delicados e dolorosos.
A tese básica do livro é a de que a sociedade tecnológica,
talvez pela sua incrível capacidade científica, descuidou do processo de
morrer, de como é importante para os doentes escreverem seu próprio capítulo
final. Em vez de cuidados paliativos diante da morte próxima e inevitável, os
médicos, às vezes, submetem os pacientes a longos processos extremamente
dolorosos, caros e, no final das contas, inúteis. Durante a doença e morte de
Tancredo Neves, cheguei a fazer um programa onde interrogava, com todo o
cuidado, se não era melhor desligar os aparelhos e deixá-lo morrer em paz. O
problema não se limita ao instante final. A medicina paliativa, segundo os
exemplos que Gawande nos dá, não só evita inúteis processos de quimioterapia e
operações dolorosas. Ela, efetivamente, ajuda as pessoas a escreverem o
capítulo final de suas vidas, às vezes ir à formatura de um neto, rever um
certo lugar do mundo, enfim, as escolhas dependem de cada pessoa. Em países
pobres, com um sistema de saúde precário, quase não existe essa intensificação
tecnológica diante do leito de morte. É um problema das classes médias e países
desenvolvidos. O tema me interessa muito do ponto de vista humano. Mas, às
vezes, sou tentado a extrapolar os limites do indivíduo e examinar o processo
de morte no curso da história.
Na política, a morte é quase uma palavra proibida. Partidos
se preparam para a longevidade no poder. Sérgio Motta, um ministro tucano,
dizia que o projeto do PSDB era ficar 20 anos no governo. Quando o PT tinha as
mesmas pretensões de tempo. Mas, rapidamente, caiu na tentação da eternidade.
Para um pensamento rigoroso de esquerda, não havia, realmente, alternância no
poder, mas uma simples troca de siglas, representando os interesses do mesmo
grupo dominante. Como produzir uma ilusão de alternância e manter o poder para
sempre? No caso da burguesia, a base fundamental de sua proeza era a
propriedade dos meios de produção. É muito difícil estatizar tudo na economia.
Mesmo não estatizando tudo, o pouco que se avança nesse caminho é suficiente
para grandes tragédias econômicas, como a da Venezuela. Mas é possível criar
uma burguesia amiga em torno do estado, comprar o Congresso, escolher juizes e
procuradores e, com algum dinheiro, criar imprensa favorável. Mas um país não é
feito apenas de corruptos e idiotas, embora no Brasil exista uma concentração
respeitável que reúne essas duas condições. A experiência econômica fracassa, a
corrupção torna-se um escândalo. Em princípio, o caminho é negar. Com o tempo,
adota-se o argumento de que todos fazem. O partido que prometeu ética na
política decadente procura se esconder nas dobras do sistema político que
condenava. Ser igual aos corruptos tradicionais é, na verdade, uma atenuante,
porque ele se sabe muito pior. Seu projeto não é apenas se corromper, mas tocar
um universo corrompido como um grande maestro.
Os marqueteiros soam para mim como os médicos que dominam a
tecnologia: sempre têm uma solução para retardar a morte, mesmo em detrimento
da qualidade de vida. O PT e o sistema partidário no conjunto vivem uma vida
miserável sob aparelhos: infusões, radioterapia, náuseas e vômitos, tudo isso
porque são incapazes de escrever o seu próprio capítulo final. Um indivíduo
diante da morte costuma revisitar lugares, cicatrizar feridas, reparar, dentro
dos limites, alguns dos erros, admitir sua finitude e desaparecer com
dignidade. Nada disso está em cena. Nem com o PT nem com os restantes partidos
que perderam o contato com a seiva vital: a participação ativa da sociedade.
Essa incapacidade de reconhecer que os partidos são mortais,
seria apenas mais uma ilusão, entres os milhares que povoam as modernas salas
de cirurgia. No entanto, na busca desesperada de uma sobrevida, o PT e aliados
não se importam em arrastar o país para o abismo. Se o Brasil aceitar isto, ele
não morrerá. Mas as novas gerações terão seu futuro comprometido. Entre as
ruínas, veremos a aliança de corruptos e babacas sustentar a presidente que
sugere que saiamos por aí para destruir a “mosquita”.
De fato, é a fêmea que transmite zika, e, hoje, se produzem
mosquitos estéreis exatamente para que, no contato com elas, inviabilizar seus
ovos. Já imagino os domingos em que, seguindo a orientação da grande líder,
sairemos às ruas para matar a “mosquita”, certamente com uma boa cartilha
superfaturada. A política do Brasil tornou-se uma farsa. Balões de oxigênio,
soro, macas, sedativos tarja preta — os partidos insistem em nos governar do
seu hospital no planalto. O próprio ministro da Saúde se sentiu mais à vontade
no hospício parlamentar do que nas ruas onde corre a epidemia. Simplesmente se
recusam a morrer. Se passam na sua frente, você grita ladrão. Mas se não
passam, é como se habitassem um mundo paralelo. É uma imagem imprecisa;
paralelas só se encontram no infinito. Estamos sendo ferrados diariamente.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 21/02/2016
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