Artigo de Fernando Gabeira
Que país é esse? País do carnaval? Não totalmente, posso
assegurar. Só no Ceará, 55 cidades, algumas delas visitadas por mim, cancelaram
a festa popular. Crise econômica, zika e a seca que ainda assola o sertão,
apesar das primeiras chuvas de inverno, são as principais causas do
cancelamento. Naturalmente, os olhos estavam voltados para o país do carnaval,
com suas cores, alegria e a beleza dos corpos.
Mas o ano começou em algum momento da semana passada. Brasil
real e Brasil fantástico se fundem, de novo, numa dramática unidade. Quem já
trabalhou com a questão nuclear sabe como é difícil transmitir a ideia de
perigo através da radiação invisível. No caso do zika, o mosquito ainda não foi
visto por milhares de pessoas, exceto em fotos microscópicas. A picada é
indolor porque sua saliva produz anestésicos. No entanto, a ONU decretou
emergência internacional. Obama pediu US$ 1,8 bilhão para investir nas pesquisas
e ajudar os países atingidos.
Tanto a ONU como Obama estão, de uma certa forma, falando de
nós, pois a recente eclosão do zika foi registrada no Brasil. Foi aqui que se
estabeleceu a relação entre o vírus e a microcefalia. Dilma pedalou no carnaval.
Outros dirigentes devem ter frequentado os camarotes, se refugiado em sítios,
navegado pelas ondas do Atlântico. Tudo bem. Não compartilho de restrições
puritanas ao carnaval. Nem acho que os dirigentes têm de trabalhar como
escravos. Se pudesse recomendar uma leitura de carnaval, indicaria “A peste”,
de Albert Camus. No livro, os ratos mortos apareciam aqui e ali, indicando a
chegada da peste bubônica.
No Brasil, os sinais são outros. Crianças com microcefalia
aparecem aqui e ali, indicando não a morte, mas o surgimento de uma geração
sacrificada. Em Maranguape, onde passei a sexta de carnaval, há 14 casos de
microcefalia suspeitos de estarem ligados ao vírus zika. Visitei uma família e
constatei, nesse caso, que, apesar do cérebro menor, a criança tem uma
excelente saúde. A própria mãe não vê diferença entre ela e o irmão primogênito
quando era da mesma idade.
Possivelmente, os problemas virão depois. Não há estrutura
para cuidar deles. Mesmo no Rio, os primeiros casos de Guillain-Barré, uma
doença paralisante, estão sendo subestimados pelo precário sistema de saúde
pública. Uma paciente de Magé tentou em três cidades e só conseguiu internação
depois de muita luta da família. O que me chamou a atenção foi a frase da
subsecretária de saúde de Petrópolis, diante dos apelos da família da vítima:
— Vão catar coquinhos. Vocês vieram de Magé.
Essa frase não apenas é uma negação da virtude humana que a
peste costuma despertar, a julgar pelo romance de Camus: a solidariedade.
As pessoas pensam dentro do seu quadradinho. O presidente do
Quênia, por exemplo, disse que não mandaria atletas para a Olimpíada se o país
se mostrasse incapaz de resolver a epidemia de zika.
Acontece que a tarefa não é apenas do Brasil. Obama pediu
dinheiro ao Congresso, também para os países atingidos. O vírus não nasceu
aqui. Possivelmente veio da Polinésia, com atletas que disputaram uma regata no
Rio. E chegou à própria Polinésia através de Uganda. A humanidade está no mesmo
barco, sobretudo com a globalização. No entanto, no epicentro desse drama
mundial, o país canta e dança feliz. Sua presidente pedala, os líderes estão
enfurnados em sítios e tríplex de propriedade duvidosa.
Desde o fim de 2015, insisto na tecla de que é uma crise
econômica, ambiental, sanitária e, certamente, moral. A seca, por exemplo, foi
agravada pelo El Niño. Ele já dura quase cinco anos no sertão do Nordeste. Não
gostaria de ver Dilma na região vertendo algumas lágrimas, porque isso Dom
Pedro já fez. Gostaria de vê-la trabalhando, articulando providências, traçando
planos emergenciais.
Da mesma forma, um presidente precisava tratar do tema do
zika com uma dedicação e frequência maior do que um simples discurso de TV,
escrito por um marqueteiro. O que ela produziu de novo foi a frase: precisamos
acabar com o mosquito, antes que ele nasça. Ao visitar no domingo uma barragem
completamente seca em Acopiara, uma cidade de 70 mil habitantes, tive uma
dolorosa intuição: a crise, a seca, a epidemia acontecendo num país corroído
moralmente, com os líderes correndo da polícia, negociando tudo para se manter
no cargo — tudo isso pode resultar em tragédia.
E a tragédia não reside somente nos fatores externos, mas na
própria cabeça dos brasileiros. Como admitir que, nessas circunstâncias
epidêmicas e emergência internacional, esteja se buscando um ministro da saúde
no PMDB? No entanto, a escolha do ministro transforma-se num subproduto da luta
entre a família Picciani e Eduardo Cunha.
Seria o caso de uma invasão internacional, não com mariners
ou forças de paz, mas com enfermeiros e psicólogos, pois o país que tem
crianças com microcefalia perdeu a cabeça.
Artigo de Fernando Gabeira, publicado no Segundo Caderno, O
Globo, em 14/02/2016
Nenhum comentário:
Postar um comentário