Artigo de Fernando Gabeira
Eram cinco horas da tarde, eu cobria uma demonstração na
porta do Palácio do Planalto. As pessoas estavam com muita raiva de Dilma e de
Lula. Sentiam-se ignoradas depois de terem ido para as ruas no domingo. Queriam
a queda de Dilma e a prisão de Lula. Dilma não só não deu sinais de renúncia,
como convidou Lula para ocupar um ministério e fugir da Lava-Jato.
Uma hora de trabalho e saí em busca de água e um banheiro no
Congresso. Ali, soube da divulgação dos áudios.
Em termos cinematográficos, o áudio contém metade das
informações de um filme. Nesse caso, os áudios eram toda a informação
necessária para inflamar as ruas. As multidões já estavam iradas e o diálogo
Dilma-Lula serviu para catalisar um processo que já estava em andamento. Os
romances do passado escreviam assim: a marquesa saiu às seis horas. Agora era
possível reescrevê-los: Dilma foi para o espaço às seis horas, no rabo de um
foguete barbudo.
Só mais tarde, exausto, examinei o conjunto de gravações.
Senti que Lula estava acuado, tentando dominar um processo que escapava ao seu
alcance. Os interlocutores, inclusive Jaques Wagner e, principalmente, Nélson
Barbosa, respondiam com frases curtas, como se estivessem incomodados, loucos
para desligar. Ele sabia que era uma luta difícil. Mas lamentava o medo dos
outros: o Congresso e o Supremo estavam acovardados. Sua intenção era deter a
Lava-Jato e criar uma frente de investigados. Se não fizessem nada, seriam
todos presos.
Renan estava fodido, Cunha, idem. Lula parecia assumir sua
verdadeira condição de chefe da imensa quadrilha, para salvá-la dos
procuradores que, segundo ele, se achavam representantes divinos. Conversas gravadas
sempre trazem embaraços. Na intimidade, somos menos cuidadosos. A série de
gravações mostrou não só que Lula queria interferir no processo legal. Mostrou
algo que não se suspeitava: a falta de carinho e solidariedade com as pessoas
que o ajudaram por décadas.
É o caso de Clara Ant. Ela chegou a ser deputada, mas depois
disso dedicou-se, inteiramente, a ajudar Lula. Ao que parece, foi um projeto de
vida. Participei de um debate com ela, sobre o conflito no Oriente Médio,
diante de uma plateia formada por membros da colônia judaica. Ela defendeu,
como pôde, a política externa do governo brasileiro. Pareceu-me uma pessoa
tranquila e bastante confortável diante de ideias divergentes. Não tenho
procuração para defendê-la e, quem sabe, pense a meu respeito todas as
barbaridades que a imprensa petista divulga. No entanto, afirmo que não é assim
que se trata uma colaboradora de tantos anos, nem é assim que se trata qualquer
mulher que tem sua casa invadida por cinco policiais. Lula disse que ela deve
ter achado um presente de Deus tantos homens entrando pela porta. Dilma riu.
Dilma, a presidenta, a mulher símbolo de uma conquista feminina, ri de piadas
machistas desde que contadas pelo seu chefe.
O ângulo político das gravações, nesta altura, já deve ter
sido exaurido, e a tentativa de fugir da Lava-Jato já se revelou o desastre que
todas as pessoas sensatas previam. O ministro Aragão, que tinha como tarefa
desmontar a Lava-Jato, foi tratado como alguém que é amigo, mas, no momento de
fazer as coisas, sempre dizia “Olha’’. Lembrou-me de Sancho Pança, que dizia
constantemente: “Olha, mestre, olha bem o que está dizendo’’.
Lula não pode ser comparado a um Dom Quixote, pois seria uma
agressão a esse maravilhoso símbolo da cultura ocidental. Ele, simplesmente,
estava desesperado. A máquina do governo petista não respondia com eficácia sua
ânsia de proteção. Os políticos corruptos marchavam para o matadouro, inertes,
à espera da salvação mágica. Ele viria para reagrupá-los, derrotar a República
de Curitiba e, certamente, encontrar um meio de financiar as relações obscenas
alimentadas pelo mensalão e pelo assalto à Petrobras.
Sua meta conservadora é cristalina. E, ainda assim, algumas
pessoas, militantes e intelectuais, continuam achando-o o caminho do futuro e
classificando de reacionário quem se opõe a um projeto criminoso de poder. As
hostes petistas receberiam ordens claras para achincalhar os adversários e
intimidar os procuradores e policiais da Lava-Jato.
No princípio da semana, fui alvo de ataques desonestos dos sites
pagos pelo governo. Talvez já fosse uma minúscula parte do plano. Não creio que
quisessem me intimidar; estavam apenas exercitando os músculos. De todos as
crises que vi no Brasil, esta tem uma singularidade: a tristeza de milhares de
pessoas que acreditaram no poder transformador da esquerda no governo. Falei
com alguns senadores que deixaram o PT. Estavam desolados, depois de tantos
anos de trabalho. Pelo menos compreenderam a realidade e podem tentar outro
caminho. Os oportunistas e carreiristas continuaram agarrados aos seus
empregos.
O drama mesmo é dos que não suportam as dores da realidade e
insistem na negação. Seguem o seu líder sem o bom senso de Sancho Pança. Não
ousam dizer: “Mestre, olhe bem o que está dizendo’’.
No Brasil, pobre quando rouba vai preso, rico quando rouba
ganha um ministério. Luiz Inácio da Silva, em 1988.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 20/03/2016
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