Eugênio Bucci, Época
O companheiro Fulano de Tal não perdoa os meios de
comunicação. Para ele, “a grande mídia” move um combate cerrado “contra as
conquistas da classe trabalhadora”. Ninguém lhe tira da cabeça que foi “a
grande mídia” que levou milhões de manifestantes às ruas para gritar contra o
governo no domingo passado, dia 13 de março.
Implacável, critica a imprensa com sangue nos olhos e
disciplina férrea. Não que seja um profissional do ramo. Ao contrário de uns aí
que ganham dinheiro agenciado por autoridades para atacar repórteres e redações
inteiras nas redes sociais, ele não fatura nada. Se faz seus discursos contra o
“quarto poder”, ele os faz por militância. “A luta de classes é hoje travada no
interior dos meios de comunicação”, ele avalia.
Há uns dois anos, leu um livro sobre a Escola de Frankfurt
e, pelo que entendeu, todo mundo que ocupa um cargo de editor para cima num
jornal ou numa emissora de TV é pau-mandado “dos patrões”. Os repórteres, não.
“O repórter também é explorado.” Já o editor e seus chefes são capachos da
“direita” e destilam “preconceito contra a esquerda”. “É assim que a propaganda
reacionária funciona.”
Fulano fica indignado quando vê tanta gente acreditando em
notícias de jornais, de revistas e de emissoras de rádio e televisão. “São uns
alienados!” Chega a sentir raiva do povo, mas rapidamente se lembra de que o
povo não é vilão, mas “vítima”. Esse pensamento o acalma, a raiva passa, e ele
repete para si mesmo: o que falta ao povo é “conscientização”. A palavra
“conscientização” é pura dialética a seus ouvidos.
Coerente, o companheiro Fulano se dedicar a sua missão de
“conscientizar” os telespectadores oprimidos. Esse é o combate prioritário, ele
tem certeza, reconfortado em sua autoimagem de detentor de portentosa
capacidade intelectual e admirável compromisso de classe.
O companheiro se acha muito “de esquerda”, é claro. Com a
mesma convicção, ele se acha também muito inteligente, mas não esquece a
modéstia, a sua modéstia politicamente corretíssima. Seguro de que enxerga mais
longe que os demais, não precisa se gabar quando percebe com nitidez cortante
os truques de ilusionismo ideológico que enfeitiçam a massa ingênua. Sente-se
tocado, predestinado, vocacionado, escolhido pela História (com H maiúsculo, é
lógico). Sente-se ligeiramente superior, numa ponta de soberba que o incomoda,
mas ele logo se perdoa por isso. Sendo tão solidário e tão desapegado de
dinheiro, tão desprovido de “ambições materiais”, empenha sua perspicácia
combativa para “resgatar” os “excluídos” da “alienação” e assim se purifica de
sua vaidade contrarrevolucionária.
Mesmo compreensivo e fraternal, às vezes não pode evitar sua
impaciência com a credulidade dos “alienados” que nem desconfiam das
estratégias montadas pela burguesia para engrupi-los. Ele costuma advertir: não
é somente pelos veículos jornalísticos que a burguesia engana as massas, não é
só pelo jornalismo que ela constrói “hegemonia” (ele também gosta de citar
Antonio Gramsci). Os piores golpes, ele pressente com sua clarividência
materialista, são perpetrados pelos programas de entretenimento. Pelas novelas,
principalmente. As novelas são “o ópio do povo”.
Dia desses, num churrasco, o companheiro Fulano de Tal
conversava de lado com o companheiro Beltrano e o companheiro Sicrano quando,
num insight, descobriu a mais nova e perversa jogada da “grande mídia” para
neutralizar a “mobilização popular”. Arregalando os olhos, bateu com o fundo do
copo na mesa e pontificou.
– A culpa de tudo isso aí é do Zé.
– Também acho! – emendou o Beltrano, que seguiu em tom de
desabafo: – O Zé Dirceu foi longe demais...
O companheiro Fulano de Tal logo enquadrou o outro:
– Não, não é o Zé Dirceu. A culpa é do Zé de Abreu.
– O ator?
– Ator nada, companheiro. O Zé de Abreu era um agente
infiltrado nas fileiras do partido só para nos desmoralizar.
Então, ele explicou sua teoria. O Zé de Abreu era o único
astro de TV que apoiava publicamente Lula e o PT. Era tão escancaradamente
petista que simbolizava a própria identidade do PT. Zé de Abreu e PT tinham
virado sinônimos. Aí, “as elites” o escalaram para fazer papel de bandido,
corrupto, ladrão e assassino na novela A regra do jogo. E o capítulo final foi
ao ar justamente nas vésperas da grande manifestação.
– Foi uma jogada da mídia tucana para desconstruir a imagem
de Lula e convencer o povo de que todo petista é bandido.
O companheiro Fulano de Tal não existe, evidentemente. Por
isso, precisava ser inventado. E ele não perdoa os meios de comunicação.
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