Artigo de Fernando Gabeira
Percebi que, aos poucos, a luz está ficando mais suave.
Daqui a pouco, a água esfria e entramos nas maravilhosas manhãs de abril e
maio. O verão foi embora e quase não nos demos conta dele, ouvindo discursos da
Dilma, vendo Lula fugir da polícia e Eduardo Cunha mover-se como um velho
dinossauro nos tapetes do Salão Verde. Ele nos trouxe uma sinistra novidade: o
vírus Zika surgido no bojo do crescimento das doenças causadas pelo Aedes
aegypti.
Verão do El Ninõ, verão confuso o bastante para contaminar o
outono. Nessa chuva de argumentos e versões, é uma tarefa importante desfazer
os mitos. Dilma e seus aliados dizem que o impeachment é um golpe. Ministros do
Supremo afirmam que impeachment não é golpe, quando realizado de acordo com a
Constituição. Quem disser que o impeachment é golpe estará ignorando a própria
Constituição, ou se rebelando contra ela. Daqui a pouco, os governistas dirão
que as pedaladas não são um crime de responsabilidade. A Lava-Jato já expôs a
base legal da queda de Dilma. Sua campanha usou dinheiro do Petrolão. As provas
são os recursos que a Odebrecht pagou ao marqueteiro João Santana, e mais
detalhadas ainda ampliam-se na delação premiada da Andrade Gutierrez. Para não
abandonar a expressão golpe, o governo terá de lançar mão do mesmo oximoro
inventado após a queda de Fernando Lugo no Paraguai: golpe constitucional.
Num discurso para sindicalistas, Lula pede à oposição uma
trégua de seis meses para o Brasil voltar a ser alegre. Não sei a que tipo de
alegria ele se refere. Com mais seis meses de Dilma, estaremos arruinados e não
restará nem vestígio da alegria brasileira. Pelo que vi no Congresso, o
impeachment segue seu rumo. O único incômodo, para mim, é ver Eduardo Cunha
presidindo o processo. O Supremo poderia nos ajudar, tirando-o de lá. Há provas
abundantes. Haveria apenas um pequeno transtorno, desses que vemos nas obras:
desculpem, mas é para o próprio bem do usuário.
A Lava-Jato segue, sob pressão intensa. O vazamento da lista
de mais de 200 políticos na planilha da Odebrecht foi uma tentativa de
deslegitimizá-la, ampliando o front dos descontentes. A lista só teria valor se
houvesse clareza sobre a legalidade da doação. Houve um tempo, não muito longe,
em que a Odebrecht era considerada uma doadora legítima. Conferia até certo
prestígio à lista das doações. No mesmo período em que a lista vazou, a
Odebrecht comunicava que faria uma contribuição definitiva, uma delação
premiada. Isto sem combinar com os procuradores, nem iniciar negociações com
eles. Quando a lista for adequadamente investigada, será preciso separar quem
recebeu doações legais, quem recebeu ilegais e quem tinha influência nas obras
tocadas pela Odebrecht.
O Brasil amadureceu para não cultivar bandidos de estimação,
nem no governo nem nas forças contrárias a ele. Tudo será esclarecido sem que
se perca o foco: os saqueadores da Petrobras e um governo que afunda o país a
cada dia.
A aliança das empreiteiras com governos no Brasil é antiga.
No meu entender, é responsável pela fragilidade de nosso planejamento. São elas
que ditam o rumo. Estavam organizadas num cartel chamado Sport Clube Unidos
Venceremos. Unidos perderam. E naufragaram junto com o governo do PT que as
levou a um nível de sofisticação e deboche sem paralelo na História. Os
próprios apelidos com que os diretores da Odebrecht tratavam os políticos
agraciados revelam como viam todo o sistema de doações como uma farsa. O
discurso público era de viabilizar eleições democráticas.
Numa semana mais calma, comparada às que virão, posso
refletir um pouco sobre como o impeachment é apenas uma condição para que o
Brasil comece a mudar na direção de uma verdadeira democracia. Os que defendem
Dilma em nome da democracia omitem o mensalão e o Petrolão, verdadeiros ataques
à democracia. O que adiantava estar no Congresso debatendo com deputados
previamente comprados pelo governo? De que adianta fazer campanha contra
máquinas poderosas, azeitadas pelo dinheiro da corrupção? Este tipo de
democracia é uma fraude. Sei porque vivi intensamente todos esses anos, desde a
retomada da democratização.
Na verdade estou até escrevendo um livrinho, “Democracia
Tropical, cadernos de um aprendiz”. A expressão aprendiz não é fortuita. No
século passado, desprezávamos a democracia e lutávamos pela ditadura do
proletariado. Quando vejo um militante de esquerda, como Guilherme Boulos,
dizer que seu movimento vai incendiar o país em caso de impeachment, leio
incendiar o país contra a Constituição. Só espero que a violência contra a
democracia seja tratada com todos os instrumentos democráticos. Não cair na
tentação de atropelar a lei. O consenso democrático é uma força tranquila, à
altura da paz dominical das grandes manifestações pelo impeachment. Não creio
que a oposição dará a Lula seis meses de trégua. Sinceramente, daqui a seis
meses ninguém sabe onde estará. Começou o outono, e de Curitiba costumam soprar
ventos frios.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 27/03/2016
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