Artigo de Fernando Gabeira
Se fosse catapultado a essa longa sessão da Câmara, sem
saber o que estava sendo votado, eu diria com tristeza: eles estão vencendo, os
velhos adversários. E se o cansaço da longa sessão me valesse um cochilo,
acordar com o voto de Jair Bolsonaro me faria sentir num templo satânico. Sabia
muito bem onde estava. Quatro mandatos e 16 anos naquele mundo subterrâneo me
fizeram prever na semana anterior, no programa da CBN, a enxurrada de votos
pela família, por filhos, netos, a avó que está doente.
Não era o primeiro impeachment que via. Foi assim na queda
de Collor. Na verdade, o nível naquela época era um pouco mais alto. Enrolados
em bandeiras, detonando bombas de papel picado, os deputados de hoje estão mais
inseridos no espetáculo. Falam com imagens. É como se colocassem uma letra
retrógrada na canção do impeachment, vitória da sociedade, de algumas
instituições e da própria transparência.
A cabeça dos deputados passou por um raio X diante de 100
milhões de espectadores. Cerca de 90 deles são investigados no Supremo. Agora
que todos sabem o que temos, certamente vão compreender a urgência de mudanças.
Com tanta coisa acontecendo, naquelas longas horas, procurei
não me esquecer das tarefas principais: a reconstrução econômica e ampla
transparência sobre o gigantesco processo de corrupção que devastou nosso país.
Os generais da esquerda levaram suas tropas para um combate
que sabiam perdido. Refugiaram-se na tese do golpe, para mascarar as graves
acusações que pesam contra eles. O que para os líderes era apenas uma boia no
oceano, para muitos foi uma ilusão de que havia um golpe em marcha, e ele seria
detido.
A insensatez se prolonga com a viagem de Dilma Rousseff ao
exterior onde foi se dizer, para a mídia, vítima de um golpe aplicado pelo
Congresso e pelo Supremo. Minha senhora, no seu país não há Constituição? Quem
dá a palavra final quando ela não está sendo cumprida?
Os jornalistas internacionais não são tão ingênuos. Sabem
que, quando se apela para eles, é porque já se perdeu a batalha no seu próprio
território. Só uma presidente enlouquecida poderia sonhar em transferir a
guarda da Constituição brasileira do Supremo Federal para a ONU. Ainda bem que
não o fez.
Esse espetáculo decadente me entristece, apenas isso. Um
jovem senador do PT disse que não dará sossego ao novo governo. O país terá de
trabalhar muito para sair da crise e deve se concentrar nisso. Mesmo porque a
própria Lava-Jato vai se encarregar de não dar sossego aos petistas, inclusive
ao jovem senador.
Dilma foi cassada por crime de responsabilidade fiscal,
decretos secretos para financiar um rombo de milhões, criar uma ilusão de
prosperidade e vencer as eleições. Repetiu o erro em 2015. Se não fosse cassada
por isso, seria pelos fatos de Curitiba: campanha com dinheiro do Petrolão,
tentativa de obstruir a Justiça. O que vem de Curitiba não resulta apenas em
impeachment, mas possivelmente em anos de cadeia. E cadeia, jovem senador, é um
lugar que sintetizo numa frase que vi em várias celas onde estive preso e
dezenas que visitei: “aqui, o filho chora, e mãe não ouve”.
Se olhamos para o futuro, pela ótica da transparência, a
derrota de domingo será difícil de explicar para milhares de pessoas que
acreditaram mesmo que havia um golpe em curso. Elas vão perceber que foram
usadas como um álibi porque seus líderes tratavam mesmo de escapar da polícia,
como aliás já ficou provado no áudio Lula-Dilma.
Essa tática do PT serve apenas para deixar mais arrasado o
lado esquerdo do espectro político. As forças conservadoras que já eram fortes
tornaram-se mais articuladas, milhares de jovens foram confrontados com a ideia
de uma esquerda cínica, corrupta, autoritária.
De uma certa maneira, os discursos contra o PT foram um
bálsamo para o partido. Olhem quem está nos derrubando. Mas todos sabemos que
não foram derrubados pela Câmara, e sim pela sociedade. Nas ruas, era o
discurso de Brasil moderno, contra a corrupção, pela transparência, por
serviços públicos decentes, a rejeição do populismo bolivariano. Na rua, havia
famílias sonhando com um projeto mais amplo; na Câmara, os deputados reduziram
os destinos do país às suas próprias famílias. Isso marca uma distância, mas no
essencial cumpriu-se o desejo da maioria.
Era o instrumento legal que a sociedade tinha para se
defender, por mais repugnantes que sejam algumas ideias que circulam ali. Tenho
repetido isso, como um privilégio da idade. Os impeachments ocorrem num período
de cerca de 20 anos. Se a frequência for mantida, este foi o último a que
assisti na Câmara. Reste o do Senado, onde se toma muito chá, e espero uma
elevação do nível. Se vierem com essa história de Deus, família, filhos e
netos, saco da arma que uso sempre que me entediam: um bom livro.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 24/04/2016
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