Artigo de Miguel Reale Júnior, O Estado de S.Paulo
No desespero por se manter no poder e garantir o emprego de
milhares de apaniguados, o PT bate tambores, timbrando o mantra de ser o
impeachment um golpe e de não haver crime. Todavia bastariam as denominadas
“pedaladas fiscais” para verificar ter ocorrido um grave crime, cujos danos são
extremamente sentidos pelos mais pobres.
Há um comportamento reiterado de tratar o público com se
privado fosse, tendo-se por subproduto o surgimento de nova elite, a elite da
propina, de que é exemplo o ocupar, como milionário, sítio e tríplex na praia
recebidos como benesses pelas vantagens viabilizadas ao longo do governo.
Esse o clima prevalecente nos detentores do poder, que dele
se assenhorearam para usufruir ao máximo, sem limites, os benefícios de viver à
tripla forra à custa do bem público.
Ora, é dentro desse espírito e desse clima de fruição e
manutenção do poder a qualquer custo que se adotou o expediente das pedaladas
fiscais. Não era possível que os governantes – presidente, ministro da Fazenda,
ministro do Planejamento, secretário do Tesouro Nacional – não soubessem, não
previssem o desastre que estavam a brevemente causar à economia do Brasil e ao
cotidiano de milhões de trabalhadores e milhares de empresários da indústria e
do comércio.
As pedaladas fiscais constituíram perigoso e malicioso
artifício por via do qual se realizaram operações de crédito – mútuos entre o
Tesouro Nacional e as instituições financeiras controladas pela União – para
pagamento de gastos primários, como Bolsa Família, seguro-desemprego,
subvenções do Programa Minha Casa, Minha Vida, diferença entre os juros
efetivos e os privilegiados cobrados pelo BNDES das grandes empresas.
Esses mútuos não foram meros adiantamentos, fluxo de caixa,
como pode ter ocorrido nos governos passados, por breve tempo e em valores
pequenos. Dizer isso é uma falácia. Acórdão do Tribunal de Contas da União
(TCU) considera impossível ver valores dessa magnitude, em ritmo crescente,
como mero fluxo de caixa entre banco e Tesouro. Ao ver do TCU, tratava-se de
empréstimo, e não mero atraso, à beira do descontrole. Os níveis efetivamente
foram elevadíssimos.
E o que é pior: essa dívida não foi registrada no Banco
Central como passivo, enquanto as instituições financeiras as anotavam como
crédito. Tal omissão dolosa de registro de dívida constitui crime de falsidade
ideológica.
Construiu-se, deliberadamente, um saldo devedor enorme,
escondido dos agentes econômicos e da população, escamoteando a existência de
um débito fiscal que só aumentava como bola de neve e cuja consequência foi a
débâcle da nossa economia. É o que o economista Marcos Fernandes da Silva
denomina “populismo fiscal eleitoral”, pois, sem caixa, se criaram dívidas
escondidas, para aparentar falsamente saúde financeira inexistente, dando
sequência a medidas populares que sangravam o Tesouro, como desonerações
tributárias, redução dos preços de eletricidade, congelamento do preço da
gasolina, incentivo ao crédito consignado, montando um cenário paradisíaco
falso para ganhar eleições.
Ao longo de 2014 e até meados de 2015, em vez de medidas
corretivas dos erros econômicos e morais visíveis, o governo adotou a manutenção
dos vícios, servindo-se das “pedaladas fiscais” como meio artificioso “para que
os gastos não fossem devidamente computados nas contas públicas visando a
mascarar o déficit fiscal,” como acentua José Roberto Afonso, um dos autores da
Lei de Responsabilidade Fiscal. Assim, aos poucos foi se desfazendo a ilusão de
crescimento de 4% com inflação controlada. A realidade era outra: destruíram um
dos fundamentos da economia, o equilíbrio fiscal, e sequestraram a esperança.
A economia havia desandado: para obter meios o governo teve
de disponibilizar títulos no mercado, que só os adquiria a juros mais elevados,
dando início ao processo inflacionário. O preço da luz e o da gasolina tiveram
de ser colocados em níveis reais, os investimentos reduziram-se. O governo, sem
plano de ação administrativa, via suas grandes empresas encolherem, chafurdadas
na mais impressionante corrupção.
Resultado: descrença no futuro como consequência da
desconfiança absoluta na presidente e no seu governo, que agora, às vésperas da
votação do impeachment, reincide nos pecados da desonestidade ao tentar cooptar
no varejo, por meios heterodoxos, deputados a seu favor.
Mas àqueles que, à míngua de argumentos, insistem em dizer
que não há crime cabe repetir tutelar-se a responsabilidade fiscal, valioso bem
da República, por via da incriminação constante do artigo 359 A do Código
Penal, e do artigo 10, n.º 9, na Lei 1.079/50, a lei do impeachment.
A Lei de Responsabilidade Fiscal edita no artigo 36 que é
proibida operação de crédito da União com instituição financeira por ela
controlada. O artigo 359 A do Código Penal, introduzido pela Lei n.º
10.028/2001, edita que constitui delito, punido com reclusão de um a dois anos,
“ordenar, autorizar ou realizar operação de crédito, interno ou externo, sem
prévia autorização legal”. Se a lei já proíbe nem poderia haver autorização.
Por sua vez, a Lei 1079/50, no item 9 do artigo 10,
introduzido pela mesma Lei 10.028, estatui ser crime de responsabilidade
“ordenar ou autorizar, em desacordo com a lei, a realização de crédito com
qualquer ente da Federação, inclusive suas entidades da administração
indireta”. Pena: perda do mandato.
Sábias essas disposições. E quem responde por esses atos
contra a lei orçamentária é a presidente, seus ministros e secretários. E a
presidente era unha e carne com o mentor da pedaladas fiscais, o secretário do
Tesouro Nacional, com quem se reunia costumeiramente.
Assim, há, sim, crime de responsabilidade. Dizer o
contrário, feito papagaio, é querer dar o golpe de joão sem braço, fingir-se de
desentendida. Mude o disco, Dilma: não há golpe, há impeachment.
*Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular da
Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e foi
ministro da Justiça.
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