Da Época
Na noite da segunda-feira, dia 6, o ex-presidente José
Sarney foi dormir cedo, depois de jantar com a mulher, Marly, e os filhos
Fernando e José Sarney Filho, ministro do Meio Ambiente. Sarney queixou-se da
situação constrangedora a que estava submetido desde a divulgação das gravações
de suas conversas com o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado. Afinal,
dissertara abertamente contra a Operação Lava Jato. Estava especialmente
incomodado com suas palavras sobre o ex-ministro do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) César Asfor Rocha. Havia pedido repetidas vezes a seu advogado, o
criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, que ligasse para Asfor
se desculpando. Sarney se preocupava também com o que Sérgio Machado e seus
filhos contaram sobre os negócios dos Sarneys na delação premiada homologada
pelo ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal (STF). Sarney soube
que Machado relatara repasses a sua filha, a ex-governadora Roseana. Sarney não
imaginava, no entanto, que poucas horas depois seu nome e a palavra “prisão”
estariam na mesma frase.
No dia seguinte, Sarney soube que o procurador-geral da
República, Rodrigo Janot, pedira ao Supremo sua prisão domiciliar, com direito
a tornozeleira eletrônica. Sarney foi, então, alvo de uma espécie de comoção
entre os mais chegados – e os mais oportunistas. A presidente afastada, Dilma
Rousseff, ligou primeiro. Na sequência, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva; mais tarde, ligou o presidente interino, Michel Temer. Sarney não estava
sozinho no novo constrangimento. Janot pediu a prisão não só dele, como também
do presidente do Senado, Renan Calheiros, do senador Romero Jucá e do
presidente afastado da Câmara, Eduardo Cunha. Janot enxergou, com base no que
disseram quando estavam à vontade com Sérgio Machado, que Sarney, Renan e Jucá
tramavam estratégias jurídicas e movimentos no Congresso para driblar a
Justiça.
Janot tomara a decisão de enfrentar um grupo de “intocáveis”
15 dias antes. Alinhavou seu pedido ao Supremo com base nas sete horas e 40
minutos de gravações feitas por um Sérgio Machado desesperado para escapar da
cadeia. Parte dos conteúdos das gravações, divulgados na semana passada, é
conhecida – e não parece dar razões para prisões preventivas, dado que os parlamentares
não são flagrados em tentativa de obstruir a Justiça. Provavelmente, é a outra
parte que embasa o pedido de Janot. O processo segue em segredo de Justiça.
Na parte conhecida das gravações, embora não haja claramente
obstrução criminosa da Justiça – como na delação de Delcídio, em que se detalha
um plano de fuga para um delator –, os três parlamentares conversam sobre
medidas jurídicas que, na prática, dificultariam o andamento das investigações
e prisões da Lava Jato. Eles discutem coisas como uma mudança na lei para
dificultar a celebração de acordos de delação premiada – o recurso que fulminou
o mundo político na Lava Jato. Falam também sobre alterações no modelo dos
acordos de leniência – para ajudar as empresas flagradas em corrupção e amigas
dos políticos. Há também uma tentativa de mudar, no Congresso, a decisão tomada
pelo Supremo em fevereiro, de mandar para a prisão réus condenados a partir da
segunda instância – o que possibilitou o encarceramento de vários condenados
pela Lava Jato.
Na parte conhecida das gravações, Machado diz, numa conversa
com Jucá: “O que acontece é o seguinte, objetivamente falando, o negócio que o
Supremo fez, vai todo mundo delatar”. “Exatamente, não vai sobrar um, o Marcelo
Odebrecht vai fazer”, afirmou Jucá. Para Machado e Jucá, é o medo de uma
condenação rápida à prisão que faz com que os que foram apanhados pela Lava
Jato contem o que sabem.
As mudanças que a cúpula do PMDB queria fazer, segundo as
conversas, constituem objeto da atenção de vários parlamentares atingidos pela
Lava Jato, e vêm sendo discutidas à luz do dia. A alteração na lei para mudar a
decisão do Supremo sobre segunda instância – que está na raiz das delações,
segundo o raciocínio de Machado e Jucá – é tratada em vários projetos
legislativos, um deles do deputado federal Wadih Damous, do PT do Rio de
Janeiro. Advogado da confiança de Lula, Damous também é autor de outro projeto,
que proíbe presos de firmar acordos de delação premiada – o benefício só
poderia ser usado por investigados em liberdade. As duas mudanças são dos
poucos pontos capazes de unir, hoje, PT e PMDB (e também o PP), as turmas de
Dilma e Temer que hoje se digladiam publicamente. Mas que estão, igualmente,
acossadas pelo envolvimento passado no petrolão.
As duas medidas, inegavelmente, dificultarim o trabalho dos
investigadores. Quando Machado e Jucá conversaram, o impeachment de Dilma
impedia o andamento dessas matérias. “Não tem um projeto na Câmara?”, pergunta
Sérgio Machado na conversa com Romero Jucá. “Tem. Vamos esperar se ele topa.
Por que o Eduardo (Cunha) não tá votando nada ali. Os caras paralisaram tudo
ali.... aquela guerra”, diz Jucá. Com o encaminhamento da votação do
impeachment, os parlamentares viram oportunidade para a ação de mudança de
leis.
O movimento de Sarney, Renan e Jucá tem braços em outras
áreas. Em paralelo à discussão no Legislativo, um grupo de advogados, liderado
por Kakay, escolheu outro caminho, tortuoso, para mudar a tão incômoda decisão
do Supremo de permitir a prisão rápida de réus. Kakay, o advogado de Sarney,
procurou o nanico Partido Ecológico Nacional (PEN) para que este apresentasse
uma ação capaz de reverter a decisão do Supremo.
O PEN tem apenas três deputados federais e a singularidade
de ser a única legenda que forma um bloco parlamentar com o gigante PMDB. Na
ação, o PEN pede que o Supremo ateste um artigo do Código de Processo Penal,
que diz que uma pena condenatória só pode ser cumprida em caso de esgotamento
de todos os recursos. A intenção é voltar ao passado, quando réus condenados em
segunda instância poderiam adiar a ida à cadeia por anos, com a apresentação de
dezenas de recursos ao Supremo e ao STJ. Kakay afirma que pediu ao PEN que
assinasse a ação depois de a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se recusar. “É
uma ação humanitária”, afirma Kakay. O presidente nacional do PEN, Adilson
Barroso, diz que foi tudo obra do acaso. Técnico em administração, Barroso diz
considerar a decisão de prender após a condenação em segunda instância
“inconstitucional”, embora afirme não entender de temas constitucionais. A ação
do PEN, relatada pelo ministro Marco Aurélio Mello, pode ir a julgamento neste
mês.
Ao pedir a prisão da cúpula peemedebista, Rodrigo Janot fez
um movimento arriscado, alvo de ressalvas de ministros do Supremo. No gabinete
de Teori Zavascki, ministro relator responsável pelo petrolão, o clima era de
contrariedade com o procurador-geral, como se a publicidade do caso visasse
precipitar a decisão. Na quinta-feira, dia 9, Janot ligou para Teori. A
conversa foi protocolar, nas palavras de interlocutores do magistrado. Janot
pediu, então, que Teori levantasse já nesta semana o sigilo de todas as
petições encaminhadas no caso. O pedido de levantamento do sigilo foi acertado
entre senadores que, no governo Dilma, faziam oposição ao bloco PT- PMDB – do
PPS ao PSDB.
A atitude de Janot, inesperada, acelerou a formação de um
amplo e pluripartidário consórcio de investigados, aliados e parlamentares
ciosos da separação entre os Poderes. O objetivo é blindar os alvos – que podem
incluir até parlamentares do PSB, PSDB e DEM. Em momentos assim, o
corporativismo dos políticos fala alto. A repercussão deixou Janot apreensivo.
Na sexta-feira, dia 10, ele deu suas primeiras declarações públicas sobre o
episódio. Disse não ter “transgressores preferidos”.
O ineditismo da medida de Janot pode ter um efeito
bumerangue. Além da reação corporativa dos senadores, da irritação de Teori e
de dúvidas sobre a adequação das provas reunidas, a preocupação é que a medida
anestesie a Lava Jato no Supremo por um bom período. “O que preocupa Renan é a
instabilidade que isso pode causar no Congresso, num momento em que dois chefes
de poder estão afastados”, diz um interlocutor do presidente do Senado. Renan
não acha que mereceria a misericórdia de Teori, mas está seguro de que, hoje,
um pedido de prisão em seu nome não tem chances de ser aprovado no Senado, como
aconteceu no caso do petista Delcídio do Amaral. Senadores de 11 partidos,
ouvidos por ÉPOCA, concordam. “Hoje não há a menor condição”, diz um senador do
PSDB. “Só se houver algum fato novo que torne a permanência do Renan
insustentável.” Para os aliados de Michel Temer, a saída do presidente do
Senado e de Romero Jucá complicaria o xadrez da votação do impeachment,
colocando ainda mais pressão sobre o governo. “Dois potenciais votos a favor do
impeachment estariam perdidos”, diz um aliado. Na PGR, a convicção é grande de
que há elementos descritivos e probatórios suficientes para embasar as medidas
cautelares requisitadas. O que Janot tem nas mãos é mais do que já foi
divulgado – e a expectativa do que ele pode saber a mais deixa o mundo político numa dolorosa
expectativa.
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