Da ISTOÉ
Uma escultura em granito adorna a entrada por onde
atravessam todos os dias os ministros do Supremo Tribunal Federal. A estátua
caracteriza Têmis, uma das deusas da Justiça na mitologia grega. Como símbolo
da imparcialidade, exibe os olhos vendados para significar decisões tomadas às
cegas, ou seja, sem fazer qualquer distinção entre as partes nem privilegiar um
lado em detrimento do outro a partir de ideologias, paixões ou interesses
pessoais. Na última semana, não fosse matéria inanimada, a venda teria
escorregado como manteiga do rosto de Têmis. O responsável por submeter a
retina da Justiça a situações constrangedoras, das quais ela deveria estar sempre
e a qualquer tempo blindada, é o procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
Ao pedir a prisão por obstrução de Justiça de Renan Calheiros, Romero Jucá,
José Sarney e Eduardo Cunha, todos do PMDB, e poupar pelo mesmo crime Dilma
Rousseff, Lula, José Eduardo Cardozo e Aloizio Mercadante, do PT, Janot, chefe
do Ministério Público, um órgão auxiliar da Justiça, mandou às favas o
princípio da isonomia o qual deveria perseguir cegamente. Na régua elástica do
procurador-geral, os rigores da lei válidos para os peemedebistas contrastam
com a condescendência dispensada no tratamento a políticos do PT.
Senão vejamos. Resta evidente, após dois anos de Lava Jato,
que um partido, o PT, – único detentor de caneta, verba e tinta para sacrificar
a maior estatal do País em troca de propinas e dinheiro ilegal para campanhas –
, comandou o Petrolão. Os tesoureiros e principais dirigentes petistas são os
engenheiros e os motores da complexa engrenagem da corrupção na Petrobras.
Também estrelados integrantes do petismo, entre os quais a própria mandatária
afastada do País, Lula e dois ex-ministros de Estado, Aloizio Mercadante e José
Eduardo Cardozo, foram flagrados em áudios incontestáveis em inequívocas
maquinações contra a Justiça e as investigações da Lava Jato. A despeito da
ululante constatação, não são do PT e sim do PMDB os políticos mais encrencados
até agora por Janot.
O despacho do procurador-geral pela prisão do trio do PMDB e
de Cunha, pronto havia 15 dias, veio à baila na última semana trazendo em seu
bojo o mesmo objeto capaz de implicar os petistas: a tentativa de criar
embaraços à Lava Jato. Renan, Jucá e o senador aposentado, José Sarney, em
gravações feitas por Sérgio Machado, discutem maneiras de enfileirar pedras no
meio do caminho das investigações. Constituem-se ali meras intenções. Graves,
decerto. Os três são habituês em escândalos e, comprovado o cometimento de
crimes, são merecedores da punição adequada. Até de prisão, se assim prever a
lei. Mas em nenhum momento das gravações há a menção a qualquer iniciativa que
tenha obstruído de fato as investigações. O que se conhece, até o momento, ao
menos no quesito obstrução de Justiça, não justifica mandá-los para trás das
grades. É inquestionável: os tratamentos, até agora, foram desiguais. Enquanto
que de um lado há elucubrações sobre como criar empecilhos ao trabalho da
força-tarefa de procuradores e policiais federais, do outro há ações concretas
para liquidar a Lava Jato. “A grande maioria da população não entende porque o
caso das gravações de Sérgio Machado teve andamento tão rápido, enquanto áudios
de Lula e Dilma, que comprovadamente mostram ação de obstrução de Justiça,
permanecem na gaveta. Janot tem de explicar”, cobrou o ex-deputado Roberto
Jefferson.
Obstruir a atuação da Justiça é crime tipificado no inciso 5
do Artigo 6º da Lei 1.079, que define os crimes de responsabilidade passíveis
de perda de mandato. Dilma foi apanhada em interceptação telefônica, autorizada
pelo juiz Sérgio Moro, numa conversa com o ex-presidente Lula para combinar os detalhes
de sua nomeação para a Casa Civil. No diálogo, Dilma disse a Lula que enviaria
a ele por intermédio de um emissário um “termo de posse” para ser utilizado “em
caso de necessidade”. A presidente começava a atuar ali para impedir que o
destino de Lula ficasse nas mãos do juiz Sérgio Moro. A intenção de impedir a
livre atuação do Judiciário já estava caracterizada. Na sequência, o que se
encontrava no plano das ideias foi consumado. O documento não apenas foi
entregue por ela a Jorge Messias, como numa iniciativa nunca antes adotada na
história republicana, a Presidência fez circular uma edição extra do Diário
Oficial para dar publicidade legal ao ato de nomeação no mesmo dia em que foi
assinado pela presidente. Para Miguel Reale Jr., um dos juristas signatários do
pedido de impeachment de Dilma, o episódio representou uma afronta aos
princípios republicanos: “É um ato de imoralidade administrativa e política”,
afirmou. Antes, a presidente afastada já havia tramado, com a contribuição do
então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, nomear Marcelo Navarro como
ministro do STJ em troca da soltura do empreiteiro Marcelo Odebrecht.
A nomeação também se concretizou e, conforme o combinado,
Navarro, ao relatar o habeas corpus do empresário, votou por sua liberdade.
Como se sabe, Odebrecht só não foi solto naquela ocasião porque Navarro foi
voto vencido no tribunal. Lula, por sua vez, no mesmo lote de gravações, foi
apanhado numa série de investidas para barrar as investigações da Lava Jato.
Antes, Lula já havia acertado com Delcídio do Amaral, ex-líder do governo
Dilma, o pagamento a Nestor Cerveró, por intermédio do filho do pecuarista José
Carlos Bumlai, num esforço descomunal para evitar a qualquer custo a delação do
ex-diretor da Petrobras. Hoje se sabe o porquê. Já Aloizio Mercadante,
ex-ministro da Educação, foi gravado numa ação semelhante: a tentativa de
compra do silêncio de Delcídio, cuja delação, se saberia a posteriori,
enredaria Lula e Dilma. Até agora, contra Dilma há um pedido de investigação, subscrito
por Janot e ainda não julgado pelo STF. Lula, por sua vez, experimenta uma
espécie de limbo jurídico. Na sexta-feira 10, será completado um mês que os
procuradores da Lava Jato pediram ao STF a devolução dos inquéritos envolvendo
o ex-presidente petista e nada foi feito. Na lista, aparecem os episódios do
sítio em Atibaia, do tríplex no Guarujá e dos valores recebidos de empreiteiras
por palestras.
O desequilíbrio da balança do procurador-geral provocou a
reação imediata das classes política e jurídica. Causou espécie a maneira como
o véu que há pelo menos três semanas encobria os pedidos de prisões do quarteto
do PMDB foi retirado. Embora o relator da Lava Jato, Teori Zavascki, já
estivesse de posse da solicitação havia mais de 15 dias, os demais ministros da
Supremo Corte só tomaram conhecimento do caso pela imprensa. O vazamento,
atribuído a Janot, despertou a ira dos ministros. Na sexta-feira 10, o
procurador negou estar por trás da difusão dos áudios. “Não tenho
transgressores preferidos”, acrescentou. O leite já estava derramado. Para os
ministros tratou-se de uma estratégia destinada a pressioná-los. “É grave. Não
se pode cometer esse tipo de coisa. É uma brincadeira com o Supremo”, sapecou o
ministro Gilmar Mendes. Outro magistrado acusou Janot de fazer “política em
favor do PT”. Fundamenta essa tese o timing escolhido pelo procurador para o
pedido de prisões. Argumentou o mesmo ministro que Renan e Jucá sobreviviam
incólumes, enquanto eram úteis ao PT. Só viraram alvos depois de bandearem-se para
a órbita do presidente Michel Temer. O raciocínio faz todo sentido. Renan
responde a 11 inquéritos no Supremo, dos quais nove associados à Lava Jato.
Nenhum destes recebeu denúncia de Janot, embora os casos em questão sejam ainda
mais graves.
O contra-ataque do Senado foi tecido com os fios da
vingança. Primeiro, a Casa inflada de corporativismo pôs em marcha um acordão.
Se a corte determinar a prisão dos senadores, a Senado promete inviabilizar a
decisão em plenário. “Até aqui o que se tem contra os senadores é uma mera
especulação de conversas reservadas”, antecipou-se o líder do governo, Aloysio
Nunes (PSDB-SP). O passo seguinte dos senadores será barrar qualquer tentativa
de Janot de emplacar o seu sucessor. Sabe-se no MPF do seu esforço em fazer de Nicolao
Dino, irmão do governador do Maranhão, Flávio Dino, o próximo procurador-geral
da República. “Não iremos esquecer”, afirmou um aliado de Jucá.
Que ninguém se engane: os intencionados em inviabilizar a
Lava Jato tentarão fazer valer o seu propósito ao menor sinal de equívoco
processual. Foi sintomática a solidariedade do ex-presidente Lula a Renan
prestada na semana passada. A quem interessa o afã de querer mandar apenas um
grupo de políticos para a cadeia com base em controversa sustentação legal? A resposta
é insofismável: só serve a quem está apostando suas fichas no ambiente do
“quanto pior, melhor” para ensejar novas eleições ou para aqueles que acalentam
o irrefreável desejo de melar a Lava Jato. A pretexto de mandar para a cadeia
um lote específico de políticos implicados no crime de obstrução da Justiça, o
diversionismo de Janot arrisca produzir exatamente o inverso: a proteção de
todos. E não é o que se cumpriu semana passada? Apesar da atuação de xerife, a
dura realidade se impôs: todos permanecem soltos. Peemedebistas e petistas.
A busca pela imparcialidade dos magistrados remonta ao
início dos tempos. Ao retirar do cidadão o direito à autotutela, o Estado
deu-lhe como compensação a figura do juiz: a pessoa a quem caberia a resolução
de impasses sem beneficiar nenhuma das partes. O jurista alemão Werner
Goldschimidt diz que a imparcialidade consiste na tentativa de colocar entre
parênteses todas as considerações subjetivas do julgador, de modo que este deve
ser objetivo e esquecer-se da própria personalidade. Não é o que parece
orientar o procurador-geral da República. Para o espanhol Faustino Córdon
Moreno, professor catedrático da Universidade de Navarra, o julgador imparcial
deve ser terceiro às partes, assentado na neutralidade e no desinteresse. Janot
também não parece agir como um ator desinteressado. Pelo contrário. Para o
Palácio do Planalto, em seu radar estão os votos necessários para enterrar o
impeachment de Dilma.
Uma adaptação a uma expressão sheakespeariana se encaixa com
perfeição à realidade atual. Há mais coisas entre Curitiba e Brasília do que
supõe nossa vã filosofia. Existe algo de podre no reino, para tomar emprestado
outro termo da tragédia de Hamlet. Que os rigores da lei valham para todos e a
venda permaneça sobre os olhos da deusa grega. Só assim, a Lava Jato estará
resguardada e marcará o capítulo mais importante da história do combate à
impunidade no País.
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