Da ISTOÉ
Nos últimos três anos, desde que o primeiro-ministro
britânico, David Cameron, convocou um plebiscito sobre a permanência ou não do
Reino Unido na União Europeia (UE), as autoridades do continente estiveram
ocupadas demais para dar a devida atenção ao debate. A crise da zona do euro,
sobretudo a da dívida grega, consumiu inúmeras horas, assim como a anexação da
Crimeia pela Rússia, a guerra civil na Síria, o enorme fluxo de refugiados rumo
ao continente e os atentados terroristas que ameaçavam as principais capitais.
A proposta britânica de renegociar os termos de adesão ao bloco estava no fim
dessa agenda até algumas semanas atrás, quando as pesquisas de opinião
mostravam que a disputa seria apertada e os líderes europeus começaram a se
preocupar com o risco real de rompimento. O resultado da consulta popular
divulgado na madrugada da sexta-feira 24 mostrou que o temor talvez tenha vindo
tarde. Com 52% dos votos, os britânicos decidiram pela saída. A questão
mobilizou tanto a sociedade que a participação dos eleitores, de 72%, foi maior
do que nas últimas eleições gerais.
O choque foi enorme. As bolsas de valores em diversas partes
do mundo, que apostavam no fico, operaram em baixa recorde e a libra esterlina
alcançou o menor valor em 30 anos. Os danos, contudo, são maiores que
financeiros. Um bloco europeu sem o Reino Unido, o primeiro dos 28 países-membros
a pedir a desvinculação, é um golpe contra a utopia representada pelo projeto
mais ambicioso de integração entre nações que surgiu depois da Segunda Guerra
Mundial. Um espaço que representaria a paz e a colaboração num mundo sem
fronteiras. Teme-se agora que o resultado do plebiscito inspire outros países a
repensar suas relações com o bloco. O fim da união que durou 43 anos deve levar
mais dois anos para ser concretizado, apesar de os porta-vozes da UE terem
pedido que Londres saia “o quanto antes, por mais doloroso que o processo
seja”, a fim de minimizar o período de incertezas. Isso significa que o Reino
Unido ficará de fora do tratado de livre-comércio entre Washington e Bruxelas,
o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, e terá que
refazer suas relações comerciais e diplomáticas. Antes disso, porém, terá que
lidar com suas próprias fissuras. Enquanto o país de Gales e o interior da
Inglaterra desequilibraram a disputa pela ruptura, Londres, Escócia e Irlanda
do Norte votaram pela permanência. Os escoceses, que, em 2014, quase deixaram o
Reino Unido, já falam em realizar um novo plebiscito de independência.
“A decisão da maioria dos britânicos está inserida num
fenômeno mais amplo, que vem desde a quebra do banco Lehman Brothers e o começo
da recessão em 2008: estamos numa fase de desglobalização”, afirma o diplomata
Marcos Troyjo, diretor do BRICLab da Universidade Columbia, em Nova York.
Segundo ele, que também é autor do livro “Desglobalização: Crônica de um Mundo
em Mudança”, com o fim da Guerra Fria, o mundo passou por uma globalização
profunda impulsionada por uma dupla coincidência – a consolidação de valores
ocidentais, como a economia de mercado e a democracia representativa, e a
tendência de integração em espaços econômicos e políticos. Nesse processo de
retirada de barreiras, houve muitos ganhos, como o acesso a mercados,
mão-de-obra mais barata e a livre circulação de bens e serviços, mas que foram
acompanhados de questões menos desejadas, como o aumento da imigração, que
provocou grandes crises de identidade nacional, e a perda de competitividade em
indústrias mais tradicionais.
A esse cenário soma-se o fraco desempenho da economia
mundial nos últimos anos e, assim, o risco de desglobalização contamina não só
a Europa. “A campanha presidencial americana é um exemplo disso, sobretudo no
lado de Donald Trump”, diz Troyjo. “É sintomático que os maiores advogados da
integração e do liberalismo, Estados Unidos e Grã-Bretanha, adotem um discurso
mais protecionista.” Em visita à Escócia, Trump comemorou o “Brexit” (expressão
em inglês que mistura as palavras Grã-Bretanha e saída), assim como líderes
iranianos e russos.
As raízes da insatisfação dos britânicos com a UE são
históricas – a começar pela geografia. Segundo Charles Grant, diretor do Centro
para a Reforma Europeia, por viver numa ilha, os britânicos falam da Europa
como se fosse outro lugar. Ao longo de sua história, Londres “esteve mais
orientada a outros continentes do que ao poder continental”, escreveu num
estudo publicado em 2008. “Os britânicos nunca se sentiram europeus”, diz Yann
Duzert, professor de Negociação e Resolução de Conflitos da Fundação Getulio
Vargas. Mais do que isso, os britânicos passaram a colher, a partir dos anos
90, resultados melhores do que países como França e Alemanha na economia,
atraindo investimento estrangeiro e mantendo uma taxa de desemprego bem menor
que a de seus vizinhos.
A mídia também teve papel importante na oposição ao bloco
europeu. Um levantamento da Comissão Europeia colocou os jornais Daily Mail e
Daily Telegraph no topo da divulgação de mentiras e alarmismos. A lista vai de
mitos como o de que as notas de euro podem causar impotência nos homens,
publicado em 2002, até o de que a entidade controlaria o uso de tostadeiras e
cafeteiras, informação que circulou nos jornais neste ano. Para Duzert, da FGV,
o resultado do plebiscito significa uma “volta ao passado”. “O Reino Unido é
uma monarquia que funciona sob um sistema clássico, ancestral, com identidade e
modo de crença particular, e a saída vai reforçar esse lado”, afirma o
professor.
A descrença na eficiência do bloco e a oposição a ele não
são exclusividade dos britânicos nem da extrema-direita. Uma pesquisa realizada
no início do mês pelo Pew Research Center mostrou que o chamado euroceticismo
tem crescido no continente. Quase metade dos europeus (42%) concorda que alguns
poderes devem ser devolvidos aos governos nacionais, em vez de mais poderes
serem transferidos a Bruxelas ou manter a situação como está. Segundo o
instituto, a imagem e estatura do bloco passaram por um “passeio de
montanha-russa” nos últimos anos. Entre 2012 e 2013, elas foram prejudicadas
pela crise econômica. Em seguida, se recuperaram, mas, desde o ano passado, têm
caído. Ainda que a visão favorável da UE tenha encolhido também entre alemães,
espanhóis e italianos, o apoio é menor entre gregos, franceses e britânicos. Os
resultados confirmam o que a última pesquisa Eurobarometer, realizada pela
Comissão Europeia no fim do ano passado, já mostrava.
“Não é uma peculiaridade britânica”, disse à ISTOÉ Andrew
Glencross, professor de Política Internacional da Universidade de Stirling, na
Escócia. “Cidadãos de diferentes países têm queixas sobre problemas que eles
sentem que a União Europeia está mal equipada para enfrentar.” Ainda de acordo
com Glencross, na zona do euro, o problema maior seria o desemprego, enquanto,
na Europa Oriental, a política de asilo seria a questão do momento. “O que nos
deparamos aqui é com um sentimento de frustração de que o bloco não está
melhorando as coisas”, afirma. “Isso contribui para uma percepção em todo o
continente de que a União Europeia é uma instituição imperfeita e falida.” Para
Simon Usherwood, professor da Universidade de Surrey, no sudeste da Inglaterra,
tamanha frustração reflete o fracasso da UE em produzir resultados úteis. “A
crise na zona do euro e a crise dos refugiados mostram que peças centrais da
União Europeia não funcionam muito bem e podem ter custos substanciais”, diz.
Durante a campanha, os militantes pró-Brexit argumentavam
que as regulações impostas pela UE custavam semanalmente ao país cerca de 600
milhões de libras esterlinas, além dos 13 bilhões de libras esterlinas de
contribuição anual. Contribui para essa visão a ideia de que Bruxelas ameaça a
soberania nacional dos países do bloco, já que os membros da Comissão Europeia
não são escolhidos diretamente pelo voto da população, que, ainda assim,
precisa se sujeitar às leis criadas por eles. Muitos temas, como agricultura,
políticas de competição e patentes, são de decisão exclusiva do bloco. Isso
favorece que partidos nacionalistas e anti-UE, com forte discurso populista,
continuem ganhando força no continente. Na semana passada, a Itália elegeu duas
prefeitas, inclusive de Roma, do Movimento Cinco Estrelas, criado há sete anos
por um humorista e, até então, considerado apenas um voto de protesto. Na França,
a candidata da Frente Nacional, Marine Le Pen, notadamente xenófoba, lidera boa
parte das pesquisas para a eleição presidencial de 2017 e promete fazer entre
os franceses um referendo semelhante ao britânico, já apelidado de “Frexit”.
Na sexta-feira 24, David Cameron renunciou ao cargo de
primeiro-ministro. Nos últimos meses, Cameron travou uma disputa dentro de seu
próprio partido, o Conservador, com Boris Johnson, ex-prefeito de Londres e
principal nome da campanha pelo “Brexit”. Perdeu e agora Johnson é o nome mais
cotado para se tornar o próximo primeiro-ministro. Outro efeito do plebiscito
recairá sobre a grande paixão dos ingleses, o futebol. Quase 400 jogadores da
liga britânica são estrangeiros, que poderão perder o direito de jogar no país.
Entre os seis principais clubes, 77 atletas teriam seus status revistos e o
tradicional Liverpool seria o mais prejudicado pela nova regulação.
No âmbito internacional, a chanceler alemã, Angela Merkel,
que liderou o processo de acolhimento dos refugiados sírios e conteve a
expulsão da Grécia da zona do euro no ano passado, apareceu em público abatida.
“Tomamos nota com pesar da decisão da maioria da população britânica”, disse
Merkel. “É um golpe contra o processo de unificação europeia.” Para evitar que
outros países sigam o mesmo caminho, a UE promete agora jogar duro. O bloco é o
destino de metade das exportações britânicas e a ruptura tem potencial para
provocar uma recessão no Reino Unido, situação que seria exemplar aos olhos das
autoridades europeias. Martin Schulz, presidente do Parlamento europeu,
alertou: “A reação em cadeia que está sendo celebrada pelos eurocéticos não vai
acontecer”, disse. “A Grã-Bretanha cortou laços com o maior mercado comum e
isso terá consequências.”
Por que o voto pela SAÍDA venceu?
Descrédito diante dos alertas econômicos, xenofobia e falta
de confiança no primeiro-ministro estão entre as razões que levaram os
britânicos a escolher deixar a EU.
A economia dos ricos
A sucessão de alertas dados por organismos como Fundo
Monetário Internacional e Banco Mundial sobre as conseqüências econômicas da
saída da UE foi vista por muitos eleitores como um ataque da elite financeira,
supostamente preocupada apenas com suas fortunas e investimentos.
Mais dinheiro para a saúde?
A campanha pela saída argumentou que, ao se livrar dos
compromissos com a UE, o Reino Unido conseguiria liberar 350 milhões de libras
para o sistema de saúde pública do país. A alegação, questionada pela maioria
dos especialistas, foi bem aceita pelos eleitores diante das enormes pressões
enfrentadas pelos hospitais e clínicas.
Imigração e xenofobia
A questão da imigração, levantada principalmente pelo líder
do partido UKIP, Nigel Farage, mostrou-se definitiva no referendo. A campanha
argumentou que, enquanto estivesse na UE, o Reino Unido seria incapaz de
controlar o fluxo de imigrantes e refugiados que entram no país.
Descrédito do primeiro-ministro
Ao fazer pesada campanha pela permanência do Reino Unido na
UE, David Cameron, do Partido Conservador, transformou a votação numa questão
de confiança em seu governo. O problema: muitos dos eleitores não acreditaram
que, se o país permanecesse no bloco, Cameron seria capaz de promover as
reformas prometidas.
A sonolência do Partido Trabalhista
O consenso entre os analistas da política britânica é de que
o Partido Trabalhista subestimou as inclinações de seus apoiadores. Apesar de
90% de seus parlamentares apoiarem a permanência na UE, a campanha em favor do
bloco foi considerada fraca e lenta.
A reação nas bolsas e
o impacto no Brasil
Mercados despencam, mas saída pode ser boa para o País.
A saída do Reino Unido da União Europeia provocou o que os
analistas chamaram de “sexta-feira negra” para mercados mundiais, com bolsas
despencando e a maior desvalorização da libra, a moeda britânica, desde 1985.
No Brasil, o dia não foi muito diferente, com a Bovespa em queda de mais de 3%
e o dólar em alta. Apesar de os efeitos parecerem inicialmente negativos para o
País, devido ao nervosismo causado pela decisão, há quem pense em cenário
positivo no médio e longo prazo. Isso porque o enfraquecimento do bloco europeu
pode levar investidores a diversificar negócios, apostando em nações emergentes
como o Brasil. Em nota, o Banco Central disse que está monitorando o cenário
internacional e que adotará “medidas adequadas” para manter o funcionamento do
mercado brasileiro.
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