sábado, 25 de junho de 2016

O FIM DE UMA ERA

Da ISTOÉ
Nos últimos três anos, desde que o primeiro-ministro britânico, David Cameron, convocou um plebiscito sobre a permanência ou não do Reino Unido na União Europeia (UE), as autoridades do continente estiveram ocupadas demais para dar a devida atenção ao debate. A crise da zona do euro, sobretudo a da dívida grega, consumiu inúmeras horas, assim como a anexação da Crimeia pela Rússia, a guerra civil na Síria, o enorme fluxo de refugiados rumo ao continente e os atentados terroristas que ameaçavam as principais capitais. A proposta britânica de renegociar os termos de adesão ao bloco estava no fim dessa agenda até algumas semanas atrás, quando as pesquisas de opinião mostravam que a disputa seria apertada e os líderes europeus começaram a se preocupar com o risco real de rompimento. O resultado da consulta popular divulgado na madrugada da sexta-feira 24 mostrou que o temor talvez tenha vindo tarde. Com 52% dos votos, os britânicos decidiram pela saída. A questão mobilizou tanto a sociedade que a participação dos eleitores, de 72%, foi maior do que nas últimas eleições gerais.
O choque foi enorme. As bolsas de valores em diversas partes do mundo, que apostavam no fico, operaram em baixa recorde e a libra esterlina alcançou o menor valor em 30 anos. Os danos, contudo, são maiores que financeiros. Um bloco europeu sem o Reino Unido, o primeiro dos 28 países-membros a pedir a desvinculação, é um golpe contra a utopia representada pelo projeto mais ambicioso de integração entre nações que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial. Um espaço que representaria a paz e a colaboração num mundo sem fronteiras. Teme-se agora que o resultado do plebiscito inspire outros países a repensar suas relações com o bloco. O fim da união que durou 43 anos deve levar mais dois anos para ser concretizado, apesar de os porta-vozes da UE terem pedido que Londres saia “o quanto antes, por mais doloroso que o processo seja”, a fim de minimizar o período de incertezas. Isso significa que o Reino Unido ficará de fora do tratado de livre-comércio entre Washington e Bruxelas, o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, e terá que refazer suas relações comerciais e diplomáticas. Antes disso, porém, terá que lidar com suas próprias fissuras. Enquanto o país de Gales e o interior da Inglaterra desequilibraram a disputa pela ruptura, Londres, Escócia e Irlanda do Norte votaram pela permanência. Os escoceses, que, em 2014, quase deixaram o Reino Unido, já falam em realizar um novo plebiscito de independência.
“A decisão da maioria dos britânicos está inserida num fenômeno mais amplo, que vem desde a quebra do banco Lehman Brothers e o começo da recessão em 2008: estamos numa fase de desglobalização”, afirma o diplomata Marcos Troyjo, diretor do BRICLab da Universidade Columbia, em Nova York. Segundo ele, que também é autor do livro “Desglobalização: Crônica de um Mundo em Mudança”, com o fim da Guerra Fria, o mundo passou por uma globalização profunda impulsionada por uma dupla coincidência – a consolidação de valores ocidentais, como a economia de mercado e a democracia representativa, e a tendência de integração em espaços econômicos e políticos. Nesse processo de retirada de barreiras, houve muitos ganhos, como o acesso a mercados, mão-de-obra mais barata e a livre circulação de bens e serviços, mas que foram acompanhados de questões menos desejadas, como o aumento da imigração, que provocou grandes crises de identidade nacional, e a perda de competitividade em indústrias mais tradicionais.
A esse cenário soma-se o fraco desempenho da economia mundial nos últimos anos e, assim, o risco de desglobalização contamina não só a Europa. “A campanha presidencial americana é um exemplo disso, sobretudo no lado de Donald Trump”, diz Troyjo. “É sintomático que os maiores advogados da integração e do liberalismo, Estados Unidos e Grã-Bretanha, adotem um discurso mais protecionista.” Em visita à Escócia, Trump comemorou o “Brexit” (expressão em inglês que mistura as palavras Grã-Bretanha e saída), assim como líderes iranianos e russos.
As raízes da insatisfação dos britânicos com a UE são históricas – a começar pela geografia. Segundo Charles Grant, diretor do Centro para a Reforma Europeia, por viver numa ilha, os britânicos falam da Europa como se fosse outro lugar. Ao longo de sua história, Londres “esteve mais orientada a outros continentes do que ao poder continental”, escreveu num estudo publicado em 2008. “Os britânicos nunca se sentiram europeus”, diz Yann Duzert, professor de Negociação e Resolução de Conflitos da Fundação Getulio Vargas. Mais do que isso, os britânicos passaram a colher, a partir dos anos 90, resultados melhores do que países como França e Alemanha na economia, atraindo investimento estrangeiro e mantendo uma taxa de desemprego bem menor que a de seus vizinhos.
A mídia também teve papel importante na oposição ao bloco europeu. Um levantamento da Comissão Europeia colocou os jornais Daily Mail e Daily Telegraph no topo da divulgação de mentiras e alarmismos. A lista vai de mitos como o de que as notas de euro podem causar impotência nos homens, publicado em 2002, até o de que a entidade controlaria o uso de tostadeiras e cafeteiras, informação que circulou nos jornais neste ano. Para Duzert, da FGV, o resultado do plebiscito significa uma “volta ao passado”. “O Reino Unido é uma monarquia que funciona sob um sistema clássico, ancestral, com identidade e modo de crença particular, e a saída vai reforçar esse lado”, afirma o professor.
A descrença na eficiência do bloco e a oposição a ele não são exclusividade dos britânicos nem da extrema-direita. Uma pesquisa realizada no início do mês pelo Pew Research Center mostrou que o chamado euroceticismo tem crescido no continente. Quase metade dos europeus (42%) concorda que alguns poderes devem ser devolvidos aos governos nacionais, em vez de mais poderes serem transferidos a Bruxelas ou manter a situação como está. Segundo o instituto, a imagem e estatura do bloco passaram por um “passeio de montanha-russa” nos últimos anos. Entre 2012 e 2013, elas foram prejudicadas pela crise econômica. Em seguida, se recuperaram, mas, desde o ano passado, têm caído. Ainda que a visão favorável da UE tenha encolhido também entre alemães, espanhóis e italianos, o apoio é menor entre gregos, franceses e britânicos. Os resultados confirmam o que a última pesquisa Eurobarometer, realizada pela Comissão Europeia no fim do ano passado, já mostrava.
“Não é uma peculiaridade britânica”, disse à ISTOÉ Andrew Glencross, professor de Política Internacional da Universidade de Stirling, na Escócia. “Cidadãos de diferentes países têm queixas sobre problemas que eles sentem que a União Europeia está mal equipada para enfrentar.” Ainda de acordo com Glencross, na zona do euro, o problema maior seria o desemprego, enquanto, na Europa Oriental, a política de asilo seria a questão do momento. “O que nos deparamos aqui é com um sentimento de frustração de que o bloco não está melhorando as coisas”, afirma. “Isso contribui para uma percepção em todo o continente de que a União Europeia é uma instituição imperfeita e falida.” Para Simon Usherwood, professor da Universidade de Surrey, no sudeste da Inglaterra, tamanha frustração reflete o fracasso da UE em produzir resultados úteis. “A crise na zona do euro e a crise dos refugiados mostram que peças centrais da União Europeia não funcionam muito bem e podem ter custos substanciais”, diz.
Durante a campanha, os militantes pró-Brexit argumentavam que as regulações impostas pela UE custavam semanalmente ao país cerca de 600 milhões de libras esterlinas, além dos 13 bilhões de libras esterlinas de contribuição anual. Contribui para essa visão a ideia de que Bruxelas ameaça a soberania nacional dos países do bloco, já que os membros da Comissão Europeia não são escolhidos diretamente pelo voto da população, que, ainda assim, precisa se sujeitar às leis criadas por eles. Muitos temas, como agricultura, políticas de competição e patentes, são de decisão exclusiva do bloco. Isso favorece que partidos nacionalistas e anti-UE, com forte discurso populista, continuem ganhando força no continente. Na semana passada, a Itália elegeu duas prefeitas, inclusive de Roma, do Movimento Cinco Estrelas, criado há sete anos por um humorista e, até então, considerado apenas um voto de protesto. Na França, a candidata da Frente Nacional, Marine Le Pen, notadamente xenófoba, lidera boa parte das pesquisas para a eleição presidencial de 2017 e promete fazer entre os franceses um referendo semelhante ao britânico, já apelidado de “Frexit”.
Na sexta-feira 24, David Cameron renunciou ao cargo de primeiro-ministro. Nos últimos meses, Cameron travou uma disputa dentro de seu próprio partido, o Conservador, com Boris Johnson, ex-prefeito de Londres e principal nome da campanha pelo “Brexit”. Perdeu e agora Johnson é o nome mais cotado para se tornar o próximo primeiro-ministro. Outro efeito do plebiscito recairá sobre a grande paixão dos ingleses, o futebol. Quase 400 jogadores da liga britânica são estrangeiros, que poderão perder o direito de jogar no país. Entre os seis principais clubes, 77 atletas teriam seus status revistos e o tradicional Liverpool seria o mais prejudicado pela nova regulação.
No âmbito internacional, a chanceler alemã, Angela Merkel, que liderou o processo de acolhimento dos refugiados sírios e conteve a expulsão da Grécia da zona do euro no ano passado, apareceu em público abatida. “Tomamos nota com pesar da decisão da maioria da população britânica”, disse Merkel. “É um golpe contra o processo de unificação europeia.” Para evitar que outros países sigam o mesmo caminho, a UE promete agora jogar duro. O bloco é o destino de metade das exportações britânicas e a ruptura tem potencial para provocar uma recessão no Reino Unido, situação que seria exemplar aos olhos das autoridades europeias. Martin Schulz, presidente do Parlamento europeu, alertou: “A reação em cadeia que está sendo celebrada pelos eurocéticos não vai acontecer”, disse. “A Grã-Bretanha cortou laços com o maior mercado comum e isso terá consequências.”
Por que o voto pela SAÍDA venceu?
Descrédito diante dos alertas econômicos, xenofobia e falta de confiança no primeiro-ministro estão entre as razões que levaram os britânicos a escolher deixar a EU.
A economia dos ricos
A sucessão de alertas dados por organismos como Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial sobre as conseqüências econômicas da saída da UE foi vista por muitos eleitores como um ataque da elite financeira, supostamente preocupada apenas com suas fortunas e investimentos.
Mais dinheiro para a saúde?
A campanha pela saída argumentou que, ao se livrar dos compromissos com a UE, o Reino Unido conseguiria liberar 350 milhões de libras para o sistema de saúde pública do país. A alegação, questionada pela maioria dos especialistas, foi bem aceita pelos eleitores diante das enormes pressões enfrentadas pelos  hospitais e clínicas.
Imigração e xenofobia
A questão da imigração, levantada principalmente pelo líder do partido UKIP, Nigel Farage, mostrou-se definitiva no referendo. A campanha argumentou que, enquanto estivesse na UE, o Reino Unido seria incapaz de controlar o fluxo de imigrantes e refugiados que entram no país.
Descrédito do primeiro-ministro
Ao fazer pesada campanha pela permanência do Reino Unido na UE, David Cameron, do Partido Conservador, transformou a votação numa questão de confiança em seu governo. O problema: muitos dos eleitores não acreditaram que, se o país permanecesse no bloco, Cameron seria capaz de promover as reformas prometidas.
A sonolência do Partido Trabalhista
O consenso entre os analistas da política britânica é de que o Partido Trabalhista subestimou as inclinações de seus apoiadores. Apesar de 90% de seus parlamentares apoiarem a permanência na UE, a campanha em favor do bloco foi considerada fraca e lenta.
A reação nas bolsas  e o impacto no Brasil
Mercados despencam, mas saída pode ser boa para o País.
A saída do Reino Unido da União Europeia provocou o que os analistas chamaram de “sexta-feira negra” para mercados mundiais, com bolsas despencando e a maior desvalorização da libra, a moeda britânica, desde 1985. No Brasil, o dia não foi muito diferente, com a Bovespa em queda de mais de 3% e o dólar em alta. Apesar de os efeitos parecerem inicialmente negativos para o País, devido ao nervosismo causado pela decisão, há quem pense em cenário positivo no médio e longo prazo. Isso porque o enfraquecimento do bloco europeu pode levar investidores a diversificar negócios, apostando em nações emergentes como o Brasil. Em nota, o Banco Central disse que está monitorando o cenário internacional e que adotará “medidas adequadas” para manter o funcionamento do mercado brasileiro.
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