Da Veja
Pronto, falaram. E falaram grosso: não querem continuar num
clube em que não suportam a diretoria, mandam menos do que acham que deveriam
e, de tanto ouvir que precisavam continuar lá, detectaram no ar alguma perversa
conspiração das elites. Pois foi o povão, as camadas de renda mais baixa e mais
distantes do multiverso de Londres, que disse não. Deu 51,9% pela saída do
Reino Unido da União Europeia. Por sua decisão, foram chamados de praticamente
todos os termos do dicionário de insultos políticos. Ignorantes, atrasados,
preconceituosos, isolacionistas, reacionários, turrões, temerários, hidrófobos,
xenófobos, racistas. E, naturalmente, fascistas, xingamento evocado hoje até em
reuniões de grupos voluntários de jardinagem. E quem há de dizer que não eram
nada disso?
Para os 48,1% que votaram pela permanência do Reino Unido,
uma federação complicada e desigual, formada por Inglaterra, País de Gales,
Escócia e Irlanda do Norte, na confederação mais complexa ainda e infinitamente
mais disfuncional da União Europeia, foi um dia triste na história. Para Boris
Johnson, o grande vencedor de uma batalha que parecia impossível ganhar,
travada na base da incomparável oratória das classes superiores salpicada de
gestos populistas de fácil compreensão pelas classes inferiores, a quinta-feira
abafada e chuvosa foi o dia da independência nacional que "agora abre uma
oportunidade gloriosa".
À exceção do bárbaro assassinato da deputada Jo Cox, uma
semana antes do plebiscito, a campanha dos dois lados aconteceu num clima
vibrante, entusiasmado, com os excessos naturais de um momento de importância
histórica. Na manhã do dia seguinte, o sentimento era de susto algo chocado
entre os que queriam ficar e de susto entusiasmado entre os que queriam sair.
Ninguém sabia cravar exatamente o que vai acontecer, mas nenhum dos lados
poderia reclamar de falta de informação. Houve um número quase massacrante de
debates, artigos, entrevistas e dados. Todas as categorias deram sua opinião,
na enorme maioria a favor da permanência. Artistas, economistas (quase nove em
cada dez), grandes empresários, cientistas e doze ganhadores do Prêmio Nobel
usaram de sedução, apelos emocionais, ameaças, raciocínio lógico e mais
qualquer coisa que achassem na caixa de ferramentas para argumentar pelo
"sim". Barack Obama disse que o reino iria para "o fim da
fila" em matéria de acordos comerciais com os Estados Unidos. Em sentido
oposto, o ministro Michael Gove tentou enfiar a rainha no meio e disse que, num
jantar com políticos em 2011, ela havia manifestado ceticismo sobre o futuro da
União Europeia. É claro que precisou pedir desculpas abjetas. Revelar qualquer
comentário feito pela rainha em reuniões fechadas é gafe imperdoável. Mas até
Robert Lacey, autor de livros sobre a monarquia, não resistiu e disse que
Elizabeth II, com seus 90 anos de idade e 63 de comportamento impecavelmente
neutro como monarca constitucional, andou perguntando a convidados se poderiam
dar três bons motivos para a permanência na União Europeia.
Diante da quase unanimidade das previsões negativas, embora
em faixas muito variáveis, para o crescimento econômico, a campanha do
"não" reforçou a ideia da retomada da soberania nacional e do caráter
passageiro dos problemas prognosticados. "Existem algumas coisas mais
importantes que o dinheiro", arriscou o historiador Andrew Roberts,
possesso com as ameaças feitas por instituições internacionais como o FMI e
líderes como Obama. "Em vez de intimidarem o povo britânico, parecem ter
acirrado sua teimosia", prognosticou. Na prática, muita coisa ficou em suspenso.
"Vou precisar mudar minha empresa para a Bélgica", previa Karen
Clements, dona de uma pequena consultoria de comunicações que tem todos os seus
contratos com a União Europeia.
O pessimismo sobre o futuro da economia também teve
componentes aparentemente superdimensionados, em especial diante da história de
um reino que chegou a fazer duas guerras no século XIX para obrigar um país, a
China, a abrir as portas ao livre trânsito de mercadorias. No caso, o ópio, a
droga proibida, que tira as dores do corpo e da alma ao mesmo tempo em que os
consome, plantado na Índia sob o domínio britânico. Hoje, seria como um país ir
à guerra para obrigar outro a comprar crack.
Um dos aspectos mais impressionantes da preferência pela
saída é que ela aconteceu num lugar onde a economia vai bem, o desemprego é
baixo, as autoridades monetárias preservam o poder de autonomia pelo fato
fundamental de que não fazem parte da zona do euro e a austeridade do governo
Cameron parece a reprimenda gentil de uma governanta inglesa comparada ao
sadismo instaurado em países como a Grécia, onde o povo votou num governo de
esquerda para não fazer tudo o que acabou fazendo. O voto pelo "não"
foi um voto contra o status quo, a estabilidade, a tendência natural a não
mudar as coisas que estão indo bem. Nesse sentido, foi também um voto de
protesto e de desconfiança contra instituições que se tornam grandes e
importantes demais, dominadas pela ideia de fazer o bem para um povo incapaz de
saber o que é melhor para si mesmo.
Na Inglaterra de hoje, não é considerado de bom-tom
mencionar uma das frases mais famosas atribuídas a Harold Macmillan,
primeiro-ministro na transição dos anos 50 para os 60. Por ser tão boa, ela é
usada em excesso quando fatos imprevistos pegam todo mundo de surpresa, e talvez
nem tenha sido realmente dita. Mas, se não foi, deveria ter sido. Questionado
por um jornalista sobre o que poderia mudar seus planos para a política
externa, respondeu com aquele tom de inabalável estoicismo tão cultivado nas
ilhas: "Acontecimentos, meu caro, acontecimentos". Pois é,
acontecimentos, como é de sua natureza, aconteceram e a roda da história deu
outro giro. Já que não dá para eleger outro povo, agora é tocar em frente
porque atrás vem gente: há um monte de partidos europeus querendo plebiscito
também.
Leia a reportagem completa na edição de Veja que já está nas
bancas.
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