quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A CONVICÇÃO DAS PROVAS

Na tarde de quarta-feira, dia 14 de setembro, o Brasil parou para ver Deltan Dallagnol. Uma coletiva fora convocada dias antes pelos procuradores da Lava Jato em Curitiba. Quase ninguém sabia o que eles falariam, embora muitos desconfiassem. Todos sabiam apenas que seria algo grandioso; a Lava Jato não costuma chamar entrevistas coletivas com tanta antecedência. Numa sala repleta de jornalistas, procuradores e delegados, Dallagnol, o líder da força-tarefa da Lava Jato, subiu ao púlpito. Fez-se silêncio. Transmitia-se tudo ao vivo para o país inteiro. Ele foi claro e direto: “Hoje, o Ministério Público Federal acusa o senhor Luiz Inácio Lula da Silva como o comandante máximo do esquema de corrupção identificado na Lava Jato”. Eram palavras que anunciavam, a um só tempo, o auge do maior caso de corrupção da história do Brasil – e a queda do homem que ainda é o maior político vivo do país.
Dallagnol detalharia, nas horas seguintes, os fatos que conduziam a força-­tarefa à conclusão de que Lula era o chefe não somente do petrolão, mas da “propinocracia”, nas palavras dele, que tomou conta do governo federal há mais de uma década, com a ascensão do PT ao Planalto. O procurador estava lá para explicar, de modo pormenorizado, a denúncia oferecida ao juiz Sergio Moro, no mesmo dia, por ele e outros 12 colegas. Nela, Lula é acusado dos crimes de corrupção passiva e de lavagem de dinheiro. Recebeu, segundo as evidências colhidas pelos procuradores, propina da empreiteira OAS, por meio do famoso apartamento tríplex em Guarujá. Em troca, havia ajudado, ilegal e indiretamente, a OAS a obter contratos bilionários na Petrobras, graças aos diretores nomeados por ele na estatal, que conheciam a regra do jogo. O procurador foi duro, como de hábito. Qualificou Lula de general do esquema. De arquiteto da quadrilha. Usou um PowerPoint tosco – que logo viralizou e virou meme – para expor os fatos do caso. Se os slides eram rudimentares, as provas eram fortes. Durante meses, os procuradores reuniram centenas de evidências para acusar Lula. Há de tudo para alicerçar a acusação inicial: depoimentos de quem conviveu com Lula no governo, planilhas, contratos, auditorias, perícias, notas fiscais, impostos de renda, fotos, anotações apreendidas, trocas de mensagens.
Dallagnol, de 36 anos, não estava ao microfone por acaso. Estudioso e metódico, destacou-se muito cedo na carreira, já em Curitiba, pela precisão técnica que empregava nos casos de lavagem de dinheiro. Como outros integrantes da força-tarefa e do Ministério Público, que agora investigam país afora os crimes cometidos na era do PT no poder, Dallagnol aprendeu perdendo. Como os colegas, frustrou-se com o triunfo continuado da chicana e da nulidade – o triunfo da impunidade. Perdiam os casos não porque os acusados fossem inocentes. Perdiam porque o sistema – a lei e a interpretação de juízes sobre ela – era feito para que perdessem, desde que o suspeito tivesse poder e dinheiro. “Meu trabalho é marcado por cicatrizes dos casos que não deram em nada. É o trauma de todos os procuradores”, disse recentemente a amigos.
As   investigações, é claro, não são perfeitas. Longe disso. Reservadamente, Dallagnol e seus colegas avaliam que cometeram dois erros na coletiva. O primeiro, ao não serem claros sobre a necessidade técnica de apontar Lula como chefe da organização criminosa. Não se tratou de um capricho ou, muito menos, de perseguição política ao ex-presidente. Tratou-se de uma necessidade técnica diante do fato de que, segundo as evidências disponíveis, a OAS reformou e deu o tríplex a Lula como pagamento de propina. Essa propina ao ex-presidente somente existiu em virtude dos contratos fraudulentos obtidos pela empreiteira na Petrobras. É uma relação de troca. E, se Lula recebeu o apartamento como propina, é preciso demonstrar que ele favoreceu ilegalmente a OAS, ainda que indiretamente, a conseguir os contratos na Petrobras. Como o ex-presidente, por definição, não atuou diretamente no direcionamento desses contratos, fazia-se necessário demonstrar que ele detinha o comando da organização criminosa. Se não fizessem isso, na lógica dos procuradores, a denúncia seria inepta. Dito de outro modo, seria rejeitada por Moro, pois não haveria crime de Lula ao receber o tríplex. Seria somente um presente generoso e desinteressado de Léo Pinheiro ao ex-presidente – coisa que, definitivamente, ninguém acredita em Curitiba.
E por que os procuradores, então, não denunciaram Lula por associação criminosa, o novo nome para formação de quadrilha? Porque o ex-presidente já é investigado por esse crime perante o Supremo Tribunal Federal, no principal inquérito do petrolão naquela Corte. Caso denunciassem Lula por esse crime, o que faria mais sentido para a população, os advogados do ex-presidente certamente entrariam com um recurso no Supremo – e com grandes chances de derrubar todo o trabalho de Curitiba. Os procuradores cometeriam o que se conhece, no jargão jurídico, como “usurpação de competência”. “Seria suicídio”, diz um deles. É mais uma demonstração, por sinal, das dificuldades criadas pela existência do foro privilegiado para autoridades – e o consequente fatiamento de investigações que deveriam ser indivisíveis. Os processos podem até dar certo, mas o público fica com uma visão igualmente fatiada da realidade dos fatos.
O segundo erro cometido por Dallagnol, e admitido por ele a colegas, foi retórico. Ao recorrer a expressões duras para caracterizar a participação de Lula no esquema, como “general”, “arquiteto” e “comandante máximo”, o procurador criou no público a expectativa de que haveria provas irretorquíveis sobre o papel de chefe desempenhado pelo ex-presidente no esquema. Não havia. Não há – ainda e oficialmente. Presumiu-se que haveria novas evidências, nesse sentido, contra Lula. A ausência delas, em contraste às duras palavras usadas, frustrou parte da plateia, que talvez já esperasse demais da coletiva. Permitiu, também, que Lula recorresse à arte que domina à perfeição: vitimizar-se, dizendo-se perseguido politicamente pelos “meninos de Curitiba”.
A linguagem usada por Dallagnon contra Lula é comum na Lava Jato, assim como a convocação de uma coletiva – e o uso de PowerPoints – para explicar didaticamente o caso. Nos últimos dois anos e meio, o procurador e seus colegas, assim como delegados e auditores da Receita, usaram termos fortes para descrever pessoas e empresas investigadas na operação. Mas Lula, esqueceu Dallagnol e a força-tarefa, açula paixões como nenhum outro político no Brasil. Com Lula, o trabalho deles percorre o planeta. Recebe um escrutínio igualmente imenso: todos têm uma opinião, ou sentimento, sobre a figura do ex-presidente. No Brasil, são sentimentos, perfazendo o arco entre o amor e o ódio, que muitas vezes anulam qualquer análise racional sobre os fatos do caso. Aconteceu com a denúncia na quarta-feira. E aconteceu em março, quando o juiz Sergio Moro deferiu o pedido para que Lula fosse ouvido coercitivamente, em vez de preso. A mesma medida fora tomada com dezenas de investigados, para alívio de muitos deles – é muito melhor passar horas depondo do que cinco dias no xilindró. Só se tornou controversa quando envolveu Lula. Em retrospectiva, Moro e alguns dos procuradores acreditam que deveriam ter optado pela prisão temporária. Foram qualificados como severos quando, na verdade, foram mais brandos que a lei permitia.
O ambiente tenso e polarizado do país, coisa que Lula e seus aliados estimulam, em que há desprezo pelas verdades factuais, permitiu também que prosperasse rapidamente, nas redes sociais, uma frase falsa atribuída aos procuradores. “Não temos provas, temos convicções” virou meme. Nem Dallagnol nem os demais procuradores disseram algo perto disso. Mas não interessa. Sites petistas espalharam a frase como prova de que não havia evidências contra Lula. Falavam em “golpe continuado” contra o PT – uma conspiração das elites para derrubar Dilma, tirar Lula das eleições de 2018 e conspurcar o legado social dos governos petistas. O próprio Lula, no dia seguinte à denúncia, usou a frase inventada como se fosse verdadeira. Chorou, não rebateu o mérito das acusações e se disse perseguido, como era previsível. Tentou convencer quem não precisava: os que acreditam numa conspiração liderada pelos “meninos de Curitiba” não acreditam numa palavra, amparada ou não em fatos, que sai de Curitiba. E acreditam em qualquer uma que seja dita por Lula.
No contra-ataque à denúncia, Lula mostrou que continua bom de palanque. O problema dele é que esse caso, entre outros da Lava Jato, não será resolvido com votos, mas nos Tribunais. E não há João Santana que ludibrie  os meninos de Curitiba, o juiz Sergio Moro e as demais instâncias do Judiciário. Eles trabalham com fatos e lógica – não fazem política, ao contrário do que parece crer Lula. E os fatos depõem fortemente contra ele.
É na força desses fatos que se encontram os méritos da denúncia apresentada na quarta-feira. Não são alguns adjetivos inapropriados que definirão o futuro de Lula; serão as provas colhidas pela força-tarefa em contraposição à qualidade da defesa do ex-presidente. Apesar dos deslizes verbais, a denúncia oferecida pelos procuradores tem elementos suficientes de autoria e materialidade para os crimes imputados a Lula. Eles fizeram o que precisavam: demonstraram evidências de que o ex-presidente cometeu os crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro ao receber o tríplex em Guarujá. Em poucos dias, Moro decidirá se acolhe ou rejeita a denúncia. Ele também pode acolher somente em relação a alguns dos crimes descritos. Caso Moro julgue que há elementos para abrir uma ação penal e começar um processo, Lula se tornará réu. Nesse cenário, terá certamente ampla oportunidade de se defender e contestar, tecnicamente, o trabalho dos procuradores. Nessa fase, igualmente, não pode ser preso, a não ser que obstrua a Justiça. A força-tarefa, por sua vez, terá oportunidade de buscar mais provas para sustentar um pedido final de condenação. Na Lava Jato, ações penais como essa têm duração média de seis meses. Se condenado, Lula pode ter de cumprir pena em regime fechado – prisão.
Lula já é réu num processo em Brasília, acusado de tentar comprar o silêncio de Nestor Cerveró, o ex-diretor da Petrobras condenado por corrupção na Lava Jato, que acabou conseguindo fechar uma delação premiada. É investigado também em Brasília por tráfico internacional de influência em favor da Odebrecht, junto a governos amigos do PT. É investigado no Supremo, pela suspeita de estar na quadrilha do petrolão. Em Curitiba, há outros dois inquéritos contra ele. Um investiga os R$ 30 milhões recebidos na empresa dele por empreiteiras do petrolão; outro, talvez o mais danoso, apura se o sítio em Atibaia, que Lula nega ser dele, apesar das fartas evidências em contrário, constituiu propina paga pela Odebrecht, pela OAS e pelo amigo dele, o operador José Carlos Bumlai. Há evidências fortes de que esse trio bancou a compra e reforma do sítio, escondendo, por meio de laranjas, a real propriedade do imóvel.
Está em curso, ainda, uma intensa produção de provas contra Lula. As delações de Léo Pinheiro; de Marcelo Odebrecht e dos demais executivos desse grupo; do ex-diretor da Petrobras Renato Duque, bancado pelo PT no cargo; e do marqueteiro João Santana, entre outras em negociação, podem resultar em mais evidências da participação do ex-presidente no petrolão. O trabalho dos procuradores de Curitiba tem sido diligente e obstinado e ajudará a esclarecer o país sobre qual, afinal, é a participação de Lula no escândalo que levou a Petrobras à lona.
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