Da ÉPOCA
Na tarde de quarta-feira, dia 14 de setembro, o Brasil parou
para ver Deltan Dallagnol. Uma coletiva fora convocada dias antes pelos
procuradores da Lava Jato em Curitiba. Quase ninguém sabia o que eles falariam,
embora muitos desconfiassem. Todos sabiam apenas que seria algo grandioso; a
Lava Jato não costuma chamar entrevistas coletivas com tanta antecedência. Numa
sala repleta de jornalistas, procuradores e delegados, Dallagnol, o líder da
força-tarefa da Lava Jato, subiu ao púlpito. Fez-se silêncio. Transmitia-se
tudo ao vivo para o país inteiro. Ele foi claro e direto: “Hoje, o Ministério
Público Federal acusa o senhor Luiz Inácio Lula da Silva como o comandante
máximo do esquema de corrupção identificado na Lava Jato”. Eram palavras que
anunciavam, a um só tempo, o auge do maior caso de corrupção da história do
Brasil – e a queda do homem que ainda é o maior político vivo do país.
Dallagnol detalharia, nas horas seguintes, os fatos que
conduziam a força-tarefa à conclusão de que Lula era o chefe não somente do
petrolão, mas da “propinocracia”, nas palavras dele, que tomou conta do governo
federal há mais de uma década, com a ascensão do PT ao Planalto. O procurador
estava lá para explicar, de modo pormenorizado, a denúncia oferecida ao juiz
Sergio Moro, no mesmo dia, por ele e outros 12 colegas. Nela, Lula é acusado
dos crimes de corrupção passiva e de lavagem de dinheiro. Recebeu, segundo as
evidências colhidas pelos procuradores, propina da empreiteira OAS, por meio do
famoso apartamento tríplex em Guarujá. Em troca, havia ajudado, ilegal e
indiretamente, a OAS a obter contratos bilionários na Petrobras, graças aos
diretores nomeados por ele na estatal, que conheciam a regra do jogo. O
procurador foi duro, como de hábito. Qualificou Lula de general do esquema. De
arquiteto da quadrilha. Usou um PowerPoint tosco – que logo viralizou e virou
meme – para expor os fatos do caso. Se os slides eram rudimentares, as provas
eram fortes. Durante meses, os procuradores reuniram centenas de evidências
para acusar Lula. Há de tudo para alicerçar a acusação inicial: depoimentos de
quem conviveu com Lula no governo, planilhas, contratos, auditorias, perícias,
notas fiscais, impostos de renda, fotos, anotações apreendidas, trocas de
mensagens.
Dallagnol, de 36 anos, não estava ao microfone por acaso.
Estudioso e metódico, destacou-se muito cedo na carreira, já em Curitiba, pela
precisão técnica que empregava nos casos de lavagem de dinheiro. Como outros
integrantes da força-tarefa e do Ministério Público, que agora investigam país
afora os crimes cometidos na era do PT no poder, Dallagnol aprendeu perdendo.
Como os colegas, frustrou-se com o triunfo continuado da chicana e da nulidade
– o triunfo da impunidade. Perdiam os casos não porque os acusados fossem
inocentes. Perdiam porque o sistema – a lei e a interpretação de juízes sobre
ela – era feito para que perdessem, desde que o suspeito tivesse poder e
dinheiro. “Meu trabalho é marcado por cicatrizes dos casos que não deram em
nada. É o trauma de todos os procuradores”, disse recentemente a amigos.
As investigações, é
claro, não são perfeitas. Longe disso. Reservadamente, Dallagnol e seus colegas
avaliam que cometeram dois erros na coletiva. O primeiro, ao não serem claros
sobre a necessidade técnica de apontar Lula como chefe da organização
criminosa. Não se tratou de um capricho ou, muito menos, de perseguição
política ao ex-presidente. Tratou-se de uma necessidade técnica diante do fato
de que, segundo as evidências disponíveis, a OAS reformou e deu o tríplex a
Lula como pagamento de propina. Essa propina ao ex-presidente somente existiu
em virtude dos contratos fraudulentos obtidos pela empreiteira na Petrobras. É
uma relação de troca. E, se Lula recebeu o apartamento como propina, é preciso
demonstrar que ele favoreceu ilegalmente a OAS, ainda que indiretamente, a
conseguir os contratos na Petrobras. Como o ex-presidente, por definição, não
atuou diretamente no direcionamento desses contratos, fazia-se necessário
demonstrar que ele detinha o comando da organização criminosa. Se não fizessem
isso, na lógica dos procuradores, a denúncia seria inepta. Dito de outro modo,
seria rejeitada por Moro, pois não haveria crime de Lula ao receber o tríplex.
Seria somente um presente generoso e desinteressado de Léo Pinheiro ao
ex-presidente – coisa que, definitivamente, ninguém acredita em Curitiba.
E por que os procuradores, então, não denunciaram Lula por
associação criminosa, o novo nome para formação de quadrilha? Porque o
ex-presidente já é investigado por esse crime perante o Supremo Tribunal
Federal, no principal inquérito do petrolão naquela Corte. Caso denunciassem
Lula por esse crime, o que faria mais sentido para a população, os advogados do
ex-presidente certamente entrariam com um recurso no Supremo – e com grandes
chances de derrubar todo o trabalho de Curitiba. Os procuradores cometeriam o
que se conhece, no jargão jurídico, como “usurpação de competência”. “Seria
suicídio”, diz um deles. É mais uma demonstração, por sinal, das dificuldades
criadas pela existência do foro privilegiado para autoridades – e o consequente
fatiamento de investigações que deveriam ser indivisíveis. Os processos podem
até dar certo, mas o público fica com uma visão igualmente fatiada da realidade
dos fatos.
O segundo erro cometido por Dallagnol, e admitido por ele a
colegas, foi retórico. Ao recorrer a expressões duras para caracterizar a
participação de Lula no esquema, como “general”, “arquiteto” e “comandante
máximo”, o procurador criou no público a expectativa de que haveria provas
irretorquíveis sobre o papel de chefe desempenhado pelo ex-presidente no
esquema. Não havia. Não há – ainda e oficialmente. Presumiu-se que haveria
novas evidências, nesse sentido, contra Lula. A ausência delas, em contraste às
duras palavras usadas, frustrou parte da plateia, que talvez já esperasse
demais da coletiva. Permitiu, também, que Lula recorresse à arte que domina à
perfeição: vitimizar-se, dizendo-se perseguido politicamente pelos “meninos de
Curitiba”.
A linguagem usada por Dallagnon contra Lula é comum na Lava
Jato, assim como a convocação de uma coletiva – e o uso de PowerPoints – para
explicar didaticamente o caso. Nos últimos dois anos e meio, o procurador e
seus colegas, assim como delegados e auditores da Receita, usaram termos fortes
para descrever pessoas e empresas investigadas na operação. Mas Lula, esqueceu
Dallagnol e a força-tarefa, açula paixões como nenhum outro político no Brasil.
Com Lula, o trabalho deles percorre o planeta. Recebe um escrutínio igualmente
imenso: todos têm uma opinião, ou sentimento, sobre a figura do ex-presidente.
No Brasil, são sentimentos, perfazendo o arco entre o amor e o ódio, que muitas
vezes anulam qualquer análise racional sobre os fatos do caso. Aconteceu com a
denúncia na quarta-feira. E aconteceu em março, quando o juiz Sergio Moro
deferiu o pedido para que Lula fosse ouvido coercitivamente, em vez de preso. A
mesma medida fora tomada com dezenas de investigados, para alívio de muitos
deles – é muito melhor passar horas depondo do que cinco dias no xilindró. Só
se tornou controversa quando envolveu Lula. Em retrospectiva, Moro e alguns dos
procuradores acreditam que deveriam ter optado pela prisão temporária. Foram
qualificados como severos quando, na verdade, foram mais brandos que a lei
permitia.
O ambiente tenso e polarizado do país, coisa que Lula e seus
aliados estimulam, em que há desprezo pelas verdades factuais, permitiu também
que prosperasse rapidamente, nas redes sociais, uma frase falsa atribuída aos
procuradores. “Não temos provas, temos convicções” virou meme. Nem Dallagnol
nem os demais procuradores disseram algo perto disso. Mas não interessa. Sites
petistas espalharam a frase como prova de que não havia evidências contra Lula.
Falavam em “golpe continuado” contra o PT – uma conspiração das elites para
derrubar Dilma, tirar Lula das eleições de 2018 e conspurcar o legado social
dos governos petistas. O próprio Lula, no dia seguinte à denúncia, usou a frase
inventada como se fosse verdadeira. Chorou, não rebateu o mérito das acusações
e se disse perseguido, como era previsível. Tentou convencer quem não
precisava: os que acreditam numa conspiração liderada pelos “meninos de
Curitiba” não acreditam numa palavra, amparada ou não em fatos, que sai de
Curitiba. E acreditam em qualquer uma que seja dita por Lula.
No contra-ataque à denúncia, Lula mostrou que continua bom
de palanque. O problema dele é que esse caso, entre outros da Lava Jato, não
será resolvido com votos, mas nos Tribunais. E não há João Santana que
ludibrie os meninos de Curitiba, o juiz
Sergio Moro e as demais instâncias do Judiciário. Eles trabalham com fatos e
lógica – não fazem política, ao contrário do que parece crer Lula. E os fatos
depõem fortemente contra ele.
É na força desses fatos que se encontram os méritos da
denúncia apresentada na quarta-feira. Não são alguns adjetivos inapropriados
que definirão o futuro de Lula; serão as provas colhidas pela força-tarefa em
contraposição à qualidade da defesa do ex-presidente. Apesar dos deslizes
verbais, a denúncia oferecida pelos procuradores tem elementos suficientes de
autoria e materialidade para os crimes imputados a Lula. Eles fizeram o que
precisavam: demonstraram evidências de que o ex-presidente cometeu os crimes de
corrupção passiva e lavagem de dinheiro ao receber o tríplex em Guarujá. Em
poucos dias, Moro decidirá se acolhe ou rejeita a denúncia. Ele também pode
acolher somente em relação a alguns dos crimes descritos. Caso Moro julgue que
há elementos para abrir uma ação penal e começar um processo, Lula se tornará
réu. Nesse cenário, terá certamente ampla oportunidade de se defender e
contestar, tecnicamente, o trabalho dos procuradores. Nessa fase, igualmente,
não pode ser preso, a não ser que obstrua a Justiça. A força-tarefa, por sua
vez, terá oportunidade de buscar mais provas para sustentar um pedido final de
condenação. Na Lava Jato, ações penais como essa têm duração média de seis
meses. Se condenado, Lula pode ter de cumprir pena em regime fechado – prisão.
Lula já é réu num processo em Brasília, acusado de tentar
comprar o silêncio de Nestor Cerveró, o ex-diretor da Petrobras condenado por
corrupção na Lava Jato, que acabou conseguindo fechar uma delação premiada. É
investigado também em Brasília por tráfico internacional de influência em favor
da Odebrecht, junto a governos amigos do PT. É investigado no Supremo, pela
suspeita de estar na quadrilha do petrolão. Em Curitiba, há outros dois
inquéritos contra ele. Um investiga os R$ 30 milhões recebidos na empresa dele
por empreiteiras do petrolão; outro, talvez o mais danoso, apura se o sítio em
Atibaia, que Lula nega ser dele, apesar das fartas evidências em contrário,
constituiu propina paga pela Odebrecht, pela OAS e pelo amigo dele, o operador
José Carlos Bumlai. Há evidências fortes de que esse trio bancou a compra e
reforma do sítio, escondendo, por meio de laranjas, a real propriedade do
imóvel.
Está em curso, ainda, uma intensa produção de provas contra
Lula. As delações de Léo Pinheiro; de Marcelo Odebrecht e dos demais executivos
desse grupo; do ex-diretor da Petrobras Renato Duque, bancado pelo PT no cargo;
e do marqueteiro João Santana, entre outras em negociação, podem resultar em
mais evidências da participação do ex-presidente no petrolão. O trabalho dos
procuradores de Curitiba tem sido diligente e obstinado e ajudará a esclarecer
o país sobre qual, afinal, é a participação de Lula no escândalo que levou a
Petrobras à lona.
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