Artigo de Fernando Gabeira
Cheguei a Brasília no seu típico calor seco, sabendo que não
haveria surpresas no resultado final. Dilma seria cassada. Restavam-me apenas
as peripécias, essas sim imprevisíveis. Pela primeira vez, vi Renan Calheiros
perder a calma no plenário. E olha que, ao microfone, já disse coisas bem
pesadas para ele, e sua máxima reação foi suspender os trabalhos por algum
tempo. Renan disse que o Senado parecia um hospício. Lembrou-me de Maura Lopes
Cançado que escreveu o livro “Hospício é Deus”.
Ela colaborava com o suplemento literário do “JB”. Ficou
internada por muito tempo. O livro mostra que o hospício, além de todos os seus
horrores, era também um espaço de negociação. Renan ficou próximo da realidade
ao reconhecer o lado maluco do plenário do Senado, assim como Maura contribuiu
ao sugerir o lado parlamentar do hospício. O problema é o equilíbrio entre os
dois. Há visões mais céticas, como a do filósofo inglês John Gray.
“De qualquer forma”, escreve ele, “apenas alguém
milagrosamente inocente em relação à História poderia acreditar que a
competição entre ideias possa resultar no triunfo da verdade. Certamente, as
ideias competem umas com as outras, mas os vencedores são aqueles que têm o
poder e a loucura humana ao seu lado”.
Renan disse também, ao microfone, que a burrice humana era
infinita. Na verdade, repetia o final de um famosa frase de Albert Einstein,
para quem o universo e a estupidez humana eram infinitos. Alguns cientistas
ainda pesquisam se o universo é mesmo infinito. Mas a parte final da frase
sobre a estupidez humana nunca foi contestada. Refletindo sobre isso em
Brasília, no corre-corre do trabalho cotidiano, constatei que também a
esperteza humana é infinita. Renan e a bancada do PMDB fatiaram a Constituição:
condenaram Dilma por irresponsabilidade fiscal e mantiveram seus direitos
políticos. Não me parece que fizeram isso por Dilma. No fundo, é também uma
manobra defensiva, prevendo o próprio futuro. Quando Romero Jucá disse que era
preciso estancar a Lava-Jato, não estava brincando. O objetivo da cúpula do
PMDB é o de bloquear investigações e neutralizar o trabalho das instituições
que combatem a corrupção no Brasil.
Nessa empreitada, contam com o deslumbramento de Temer, para
quem um pedaço do mandato presidencial é um presente dos céus. E com a timidez
dos tucanos, que temem romper uma aliança num momento de reconstrução. O sonho
das raposas é continuar depenando o galinheiro. Se as pessoas não se derem
conta, elas liquidam os avanços das instituições de controle e continuarão roubando
o país até o último centavo. Se o quadro é tão ameaçador, não teria sido melhor
manter o mandato do PT até 2018?
Acontece que são forças com objetivos diferentes. As raposas
do PMDB querem apenas enriquecer em paz. O PT tinha um projeto hegemônico que
passava pelo crescente controle do Parlamento, dos juízes e, também, se tudo
desse certo, da própria imprensa. Com sua vasta experiência política, as
raposas recebem as críticas, lamentando apenas que estamos sendo injustos com
elas. O PT seguia arruinando o país mas recebia as críticas com uma agressiva
tática de defesa. Questionar a corrupção oficial era coisa da elite, da
burguesia, de gente loura de olhos azuis que não aceita que o filho da
lavadeira estude Medicina nem que os pobres viajem ao seu lado nos aviões.
A mudança no discurso oficial é insidiosa, sedutora.
Cúmplice de toda a política que arruinou o país, num misto de incompetência e
corrupção, o PMDB se dispõe a conduzi-lo a um porto seguro.
O lugar para onde as raposas sonham em nos conduzir é um
oásis ameno, onde possam continuar enriquecendo, posando, ao mesmo tempo, de
estimados líderes nacionais.
Assim como setores da esquerda toleram a corrupção sob o
argumento de que a vida do povo melhorou, os liberais tendem a olhá-la com
complacência desde que se façam as reformas sonhadas pelo mercado. Num livro
sobre a tolerância na idade moderna, Wendy Brown lembra aos estudiosos que ela
é uma descendente da superação das sangrentas guerras que separaram política e
religião. Modernamente, existe um espaço maior para o indivíduo, diante do
Estado e da Igreja. Mas existe também um certo cansaço diante das tramas
políticas, uma vontade de se concentrar apenas na sua própria vida. O novo
governo traz um perigo de natureza diferente. Ele não quer transformar o país
num paraíso bolivariano. Nem se meter na liberdade individual, classificando as
pessoas como reacionárias, progressistas ou preconceituosas. Quando Renan disse
que a estupidez humana era infinita, concordei com ele pela primeira vez. Se estivesse
no plenário, apenas acrescentaria: a malandragem humana também. O país apenas
se livrou de um tipo de exploração. Por falar em tortura, tema que Dilma trouxe
à tona, não se pode esquecer que uma boa equipe é sempre dividida entre os bons
e os maus torturadores. Uns mordem, outros sopram.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 04/09/2016


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