Editorial O Globo
O impeachment da presidente Dilma Rousseff, economista
oriunda do brizolismo gaúcho, é o segundo, na vigência do estado democrático de
direito, em 24 anos. O primeiro, de Fernando Collor de Mello, senador por
Alagoas, e um dos 61 que votaram pela saída de Dilma, foi importante
demonstração de vigor das instituições da democracia representativa, dada havia
apenas quatro anos da promulgação da Constituição de 1988, marco do retorno ao
estado democrático, após duas décadas de ditadura militar.
Mudou o status do Brasil no mundo civilizado. O fato de o
afastamento de Dilma ter obtido sete votos a mais que o mínimo exigido de dois
terços dos senadores não pode ser ofuscado pelo desencontro entre PSDB e PMDB
na aprovação, contra a posição dos tucanos, da liberação para que Dilma ocupe
cargos públicos. São um feito os dois impeachments, sem rupturas, num
continente cuja trajetória é pontilhada de acidentes institucionais e
autoritários, à direita e à esquerda, tendo como ligação, entre esses dois
campos que se opõem, o nacionalismo, muitas vezes turbinado pelo populismo,
como tem sido na tragédia do chavismo e foi na debacle do lulopetismo, com a
mais grave desestabilização da economia brasileira na República.
É de notável ineditismo, na América Latina, o fato de esses
incidentes institucionais no país serem contornados sem as rupturas clássicas
na região. É tema de debates e estudos de cientistas políticos a incapacidade
de o Brasil, no arranjo inaugurado na Nova República, não permitir maiorias
estáveis no Congresso, para dar governabilidade aos inquilinos do Planalto. A
discussão continuará. O PT resolveu literalmente comprar a base parlamentar,
para viabilizar um projeto de eternização no poder.
Para isso, assaltou a Petrobras, outras empresas públicas e
se enredou em um novelo do qual está longe de se livrar nos tribunais. Sempre
guiado pela máxima dos “fins que justificam os meios”. A razão do impeachment
de Dilma é de outra natureza. Restou provado na acusação encaminhada à Câmara
por Hélio Bicudo, procurador que combateu o Esquadrão da Morte em São Paulo,
fundador dissidente do PT; os advogados Miguel Reali Jr., ex-ministro da
Justiça, na gestão FH; e Janaína Paschoal, professora do Largo de São
Francisco, simbólica Faculdade de Direito da USP, que Dilma cometeu crimes de
responsabilidade de ordem fiscal e orçamentária.
Foi diferente do que aconteceu com Collor, condenado no
Senado por quebra de decoro, devido a denúncias de corrupção, mas inocentado no
Supremo. Tudo também dentro das regras legais. Pois o julgamento no Congresso é
de cunho político. No processo contra Dilma, não há acusações de corrupção, mas
crimes que têm a ver com a visão ideológica lulopetista, com o tempero
brizolista da ex-presidente. Não passou despercebido que, ao se defender no
Senado, Dilma Rousseff usou tática do guia Leonel Brizola: nunca responder às
perguntas e falar o que quiser.
Dilma se converteu à responsabilidade fiscal muito tarde, ao
vir a dizer, só nesta semana, no Senado, ante o cadafalso, que lamentava o PT
não haver votado para aprovar a LRF. No poder, atropelou-a sem piedade. Dilma
não fez qualquer menção, por óbvio, mas o partido pelo qual se elegeu, o PT,
também não assinou a Constituição de 1988. Louve-se a coerência: a legenda
sempre avança contra a Carta e a LRF. Ao propor “Constituintes exclusivas”, por
exemplo. Dilma e os “desenvolvimentistas” não gostam da responsabilidade
fiscal.
Consideramna “neoliberal”, um obstáculo conservador ao
ativismo fiscal do Estado, esta uma obsessão da esquerda latino-americana do
pós-Guerra. Mas todos precisam cumpri-las, a Carta e a LRF, com as respectivas
normas decorrentes. Dilma perdeu o cargo por sectarismo ideológico e
voluntarismo, por achar que “vontade política” é o que resolve problemas no
governo. Algo de sabor stalinista. Ao ir contra leis, a Carta e princípios
técnicos inamovíveis, cometeu suicídio.
Collor sofreu impeachment devido à ética; Dilma, por
investir contra pilares institucionais que o Brasil começou a construir no
Plano Real, a partir de 1994, com Itamar e Fernando Henrique Cardoso. Eduardo
Cunha é, na “narrativa” lulopetista, peça central de um onírico complô em que
se misturam corruptos temerosos da LavaJato, defensores do ex-presidente da
Câmara e “inimigos das conquistas sociais”. E, claro, a “mídia”. Mas foram a
obsessão com o ativismo estatal e os gastos sem medidas, maquiados por técnicas
da “contabilidade criativa”, que construíram a enorme crise fiscal, visível a
todos a partir de 2015, quando afloraram os números reais. Ou próximos deles.
Assim, edificou as bases do seu enforcamento legal. Mas nem
tudo é pura ideologia. Houve também forte dose de esperteza, a fim de esconder
o lixo debaixo do tapete, marquetear um país inexistente na propaganda política
de 2014, e ganhar a reeleição em rotundo estelionato. Depois, veio o tarifaço,
porque o governo congelou combustíveis, energia elétrica etc., para represar de
maneira artificial a inflação, a fim de faturar a reeleição. Lulopetistas devem
ter aprendido com Ulysses Guimarães e José Sarney quando, em 1986, fizeram o
mesmo para o seu PMDB ganhar as eleições no fim daquele ano, nos estertores do
Cruzado.
Elegeram 22 governadores. Dias depois, executaram os ajustes
necessários, com liberação de preços e tarifas. O filme passou mais uma vez em
2015, com Dilma. Mas não chegou ao fim, porque as instituições republicanas
estão solidificadas. A edição de decretos de gastos sem aprovação do Congresso
e as “pedaladas” — deixar instituições financeiras pagar despesas do Tesouro,
numa operação ilegal de crédito à União — demoliram Dilma. O conjunto da obra
de malfeitos fiscais é de enormes proporções.
Eles vêm desde o final do segundo governo Lula, mas bastaram
os crimes cometidos em 2015, conforme limitação imposta pelo presidente da
Câmara, Eduardo Cunha, ao aceitar o pedido de impeachment, para derrotar Dilma
e o lulopetismo de pedigree brizolista. O saldo desses empréstimos ilegais concedidos
à União, por decisão do Planalto, pelo Banco do Brasil, pela Caixa Econômica,
pelo BNDES e até pelo FGTS chegou em 2015 a pouco mais de R$ 50 bilhões, cifra
gigantesca.
O Brasil havia voltado ao passado, à antessala da
pré-hiperinflação, quando o BB se financiava diretamente no Tesouro e
governadores ordenhavam seus bancos estaduais como casas da moeda privadas.
Costuma-se dizer que a estabilização econômica permitida pelo Plano Real se
tornou patrimônio da sociedade. O impeachment de Dilma é prova cabal de que
isso é verdade. A partir de agora, qualquer governante que pense em atalhos à
margem da lei, no manejo orçamentário, precisará refletir sobre as implicações
de seus atos.
O mesmo vale para delírios no campo político-institucional.
O fortalecimento não é apenas das cláusulas da responsabilidade fiscal, mas da
Constituição como um todo, para desaconselhar de vez projetos bolivarianos como
o do lulopetismo. Serve de aviso geral à nação.


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