Editorial O Estado de S.Paulo
Todo cidadão honesto deste país há de estar estupefato com o
desfecho do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Malgrado o
fato de que a petista finalmente teve seu mandato cassado, levando alívio ao
País, tão maltratado pela incúria administrativa e pelo desleixo moral da agora
ex-presidente e de seu partido, um punhado de notórios personagens da vida
política – desses que não se consegue identificar bem na escala biológica,
porque são ao mesmo tempo animais de pluma, couro e escama – aproveitou a deixa
para urdir uma maracutaia digna de uma república bananeira. O objetivo, claro,
foi beneficiar todos os políticos facínoras que a Justiça está por alcançar.
Mas o resultado da trama, do qual essa chusma de irresponsáveis talvez nem
tenha se dado conta, é que o governo de Michel Temer, do qual vários deles
esperam fazer parte e colher seu quinhão, corre o risco de terminar antes mesmo
de começar (ver o editorial Dá para olhar para a frente?).
Como toda maquinação, esta não ficou clara senão pouco a
pouco, minuto a minuto, para assombro geral, em meio ao drama da votação que
determinou o impeachment de Dilma no Senado. As coisas ficaram meridianamente
claras quando a bancada do PT fez ao presidente da sessão, o presidente do
Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, um pedido de destaque por meio
do qual pretendia que houvesse duas votações: uma sobre a perda do mandato e
outra sobre a perda dos direitos políticos de Dilma. O argumento, mais um da
inesgotável coleção de chicanas petistas, era que não havia vinculação entre a
cassação e a inabilitação.
Tivesse o ministro Lewandowski um mínimo de familiaridade
com o artigo 52 da Constituição, o pedido teria sido rejeitado sem maiores
considerações. Esse artigo, que estabelece a competência do Senado para
processar e julgar o presidente, diz em seu parágrafo único que a condenação,
proferida por dois terços dos votos dos senadores, será limitada “à perda do
cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem
prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”. Salvo se o uso da preposição
“com” ganhou significado oposto ao que manda a boa gramática, não é possível
concluir outra coisa desse artigo senão que a inabilitação para o exercício de
cargos públicos acompanha, necessariamente, a perda do cargo de presidente.
O fato é que aqueles que tramaram a cavilação estavam no seu
dia de sorte. O ministro Lewandowski, não conhecendo o artigo 52, aceitou o
destaque que fatiou a votação. E assim, com a inocente anuência do presidente
do Supremo Tribunal Federal, a Constituição foi reescrita no joelho.
Adotada a escandalosa manobra, senadores revezaram-se em
vexaminoso exercício de caradurismo para dar um mínimo de dignidade à esbórnia.
A senadora Kátia Abreu, por exemplo, apelou à piedade dos colegas, ao dizer que
Dilma, se ficasse inabilitada, teria de viver com uma aposentadoria de meros R$
5 mil. Já o presidente do Senado, Renan Calheiros, cujas digitais estão por
toda a parte nesse caso, brandindo um exemplar da Constituição, disse que “não
podemos ser desumanos” com Dilma. O ministro Lewandowski, com ternura cristã,
alertou os parlamentares que Dilma, se fosse inabilitada, não poderia ser “nem
merendeira de escola”.
Assim, o impeachment de Dilma passou, mas seus direitos
políticos foram preservados. A punição pela metade não garantirá a Dilma um
emprego de merendeira, mas se presta a livrar plumas, couros e escamas de
figuras graúdas do Congresso que estão enroladas na Justiça, algumas das quais
com assento nas mesas que dirigiram os trabalhos desse processo e que deveriam
estar conscientes de sua responsabilidade perante a Nação.
Trinta e nove senadores que garantiram os direitos políticos
da ex-presidente comprovaram que o brasileiro não tem “complexo de vira-latas”
por causa das vicissitudes do futebol, mas porque é reduzido a essa condição
por políticos agrupados em matilhas.
Essa imoralidade abre precedente para uma catadupa de
escândalos. O que aconteceu ontem não foi motivo apenas para que o PSDB e o DEM
ameaçassem romper a coalizão com o governo Temer, comprometendo todo o esforço
de recuperação nacional. Trata-se de um episódio que expõe a inesgotável
capacidade da classe política nacional de trair a confiança dos brasileiros de
bem.
Charge do Sponholz


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