Do UOL
Livro de Mário Rosa
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Uma das coisas que mais me irritam nesses livros de gestão e
de carreiras é que ninguém fala do acaso. E digo isso não por acaso.
Trinta anos atrás, antes que eu e você imaginássemos nos
encontrar por aqui, um evento casual foi determinante para construir tudo o que
você vai ler daqui pra frente.
Tava zanzando pela Universidade de Brasília, onde estudei, e
não sei por que cruzei com uma palestra do escritor peruano Mario (meu xará,
meu Deus, percebo só agora) Vargas Llosa.
Jornalistas não são intelectuais. Raramente são. Não conheci
nenhum. Escrevemos como escrevem os autores de verdade, esses caras iluminados
que criam mundos na literatura. Mas a distância que separa um texto
jornalístico, por melhor que seja, a começar pelo meu, de um texto literário é a
mesma entre a de um cantor de boteco e o Pavarotti. Nada contra os cantores de
boteco, aliás.
Mas, considerando que não sou nenhum intelectual, foi
bastante por acaso que acabei naquela palestra, naquele dia. Não sei o que fiz
antes, não consigo lembrar o que fiz depois, não lembro nem mesmo da palestra
em si. Vai dizer que não existe destino?
Sei que Vargas Llosa estava lá promovendo um livro dele, “A
Guerra do Fim do Mundo” (será coincidência?).
É um alentado volume sobre a Guerra de Canudos. Alguém na plateia,
impressionado com a riqueza de detalhes da obra, perguntou ao escritor como ele
havia guardado tantas minucias. Anotações? Gravações? O quê?
Ele respondeu que percorrera o itinerário todo, conversando
com todo mundo sem anotar nada, sem registrar nada. E disse, eu me lembro (a
rigor só me lembro disso):
- Achei que só ia guardar na memória o que fosse importante.
O que eu esquecesse é porque não valia a pena guardar.
E aí é que tá o destino nisso tudo. Ouvi aquela coisa e ela ficou guardada na minha cabeça, sem eu
lembrar, esse tempo todo. Vivi a vida, fui em frente e somente quando fiquei
grávido deste livro é que esse fragmento ressurgiu. Ele estava ali alojado para
o dia em que eu pudesse compreendê-lo.
Este livro segue rigorosamente esse método aleatório que eu
ouvi naquela palestra antiga. Foi aquela frasezinha, jogada ali no meio do
nada, ouvida por mim e guardada por esse tempo todo, que ligou a ignição que me
conduziu nesta narrativa.
Atenção, meninos e meninas, guardem o que este cara tem para
lhes dizer: às vezes, um evento banal que você viveu pode ganhar sentido um
dia.
O tempo é uma linha que precisamos viver para conectar os
pontos.
Nossa! Nada mau para um cantor de boteco…
Se há uma coisa boa em ter vivido uma vida, sobretudo se no
meio ela foi interessante, é chegar a um certo ponto e poder conectar várias
coisas dispersas. É um mosaico, cheio
de pedacinhos de coisas diferentes que
se juntam num certo momento e formam um todo.
E aí, como na palestra que não sei por que vi, mas agora
sei, esses fragmentos vão se juntando a outros e, no final, você tem uma vida cheia de cacos de vidro de
diversas cores, e a sua memória cola essas pecinhas todas naquilo que um dia
descobre ser você. Ou ter sido você. Hoje tenho certeza de que eu fui eu. Pelo
menos, até onde sei.
Existem diferenças entre memórias e biografia. Biografia é
coisa pra gente grande. Memória pode ser de qualquer um. Não acho que você vá
ler a minha história, nem a História, embora tenha uma porção de estória de
gente famosa aí no meio.
Acho que isso lhe oferece acesso a uma vida um pouquinho
fora do normal. Só isso. Tomara que goste.
Tava lá pelos 30 anos quando já tentava decifrar esse
mistério das lembranças: por que a gente lembra de uma cena, de um momento
qualquer da infância ou do passado, e não tem a menor ideia do que aconteceu
antes ou depois?
Desenvolvi minha interpretação particular desse fenômeno.
Sabe, naqueles filmes, quando há um naufrágio e o sobrevivente chega a uma ilha
deserta e põe uma mensagem na garrafa e a arremessa ao mar? A garrafa vai indo,
seguindo as correntes, até que, um dia, chega ao continente e alguém volta para
salvar o náufrago.
Acho que as lembranças isoladas e pontuais são essas
garrafinhas que mandamos pra nós mesmos, pra que um dia, quando sejamos
“grandes”, voltemos até nós pra nos salvarmos. Você vai ver uma porção de
garrafinhas minhas boiando por aqui. Quem sabe você se encontra por aí?
Uma das delícias deste livro para mim foi a forma como ele
nasceu: ele simplesmente nasceu. Eu não o fiz. Só tive que aguardar a gestação.
Alguém tinha de digitar os teclados. Meu corpo fez isso. Não escrevi. Fui,
acho, o primeiro leitor.
Sempre tinha ouvido falar que muitos autores de primeira
escrevem sem planejar nada. O livro vai surgindo e eles vão navegando. Morria
de inveja quando ouvia isso. Tudo bem que falar da minha vida é infinitamente
mais fácil do que fazer ficção, mas senti um pedacinho desse prazer de ir do
nada para o lugar nenhum nesta escrita. Tudo caiu da árvore: ploft!
Uma das poucas coisas chatas de ter escrito livros era que,
volta e meia, um ou outro perguntava: “Quando é que sai o próximo?”.
“Sair como, se ainda não entrou?”, perguntava eu de volta.
Este livro se formou dentro de mim, sem eu saber, e saiu de parto natural, mas
apressadamente. Eu o escrevi em duas semanas.
Lembrei de quando visitei um monumento de 500 colunas de
concreto, cheias de ornamentos delicados, feitas pelo meu irmão e amigo, o
pintor Siron Franco. Era uma obra para comemorar o quinto centenário do
descobrimento. Uma coluna para cada ano. Perguntei como se sentia depois de
realizar algo tão prodigioso. “Tá vendo todas essas toneladas aí? Isso é tudo
loucura que tava dentro da minha cabeça. Agora não tá mais”, disse-me Siron. Ao
escrever, aqui, finalmente senti o que ele quis dizer.
Uma coisa boa foi quando eu percebi qual deveria ser a “voz
narrativa” que iria contar a história. Nossa! Jornalistas adoramos, de vez em
quando, frases gongóricas. Voz narrativa é apenas uma forma de chamar o jeito
de escrever. O narrador aqui é um cara que soltou um pouco a franga. Não queria
adotar aquele tom de pinguim de geladeira que você já viu por aí.
Meus outros livros eram todos coisa de engenheiro: começavam
estruturados, subdivididos, tudo previamente concebido, o que dizer em cada
capítulo, quantos capítulos etc. Este aqui é coisa de arquiteto: surgiu uma
forma e, depois, que se danem os calculistas para colocar tudo de pé.
Não tenho nada contra a literatura corporativa. Nos tempos
em que a nobreza reinava dos castelos, saiu um Maquiavel. Agora que ela mora
nos escritórios, é natural que surja um Warren Bufett. Cada um na sua. Mas quis
quebrar um pouco o tom de certeza que existe nesses livros que se passam na
pessoa jurídica. Espero ter conseguido, ao menos um pouco.
Não fui um personagem relevante e, muito menos, testemunha
ocular da História, ao menos à altura desse título pomposo. Passei por uma porção
de coisas simplesmente porque estava lá.
É por isso que me considero uma espécie de camareiro que
vivia no Palácio de Versalhes.
(Vou explicar isso aqui um pouquinho mais. É porque
jornalistas são obrigados a “contextualizar” coisas, partindo sempre do
pressuposto de que o leitor é um imbecil. Se você não se acha assim, pule o
próximo parágrafo).
Versalhes era a sede do poder real francês, símbolo do rei
sol, Luís XIV. O mundo girava em torno da nobreza e, no centro dela, estava o
rei.
Capitais, de alguma forma, são sempre Versalhes. Capital é
uma cabeça cercada de gente por todos os lados. A capita, no caso, é o rei ou o
nome que se dê a ele.
Vivi em nossa Versalhes cabocla a minha vida toda. Quando
escrevo este livro, Brasília tem 56 anos, eu 52.
Expandindo o conceito de “capital” para o significado de
“elite”, vivi profissionalmente no meio disso ou de parte disso, na minha idade
adulta.
Sempre tive muito claro qual era o meu papel: eu era um
lacaio. Nobres eram os que eu servia. Podia me vestir parecido; podia morar em
aposentos patinados que a choldra considerasse cortesãos; podia comer as
migalhas dos majestosos banquetes; podia até ser confundido e ir parar na
guilhotina. Mas eu não era nobre. Era serviçal. E, como era um empregado
doméstico e de confiança, pude circular por Versalhes inteira, com o meu
disfarce de consultor de crises.
O meu é o relato de um camareiro.
Nota pé de prefácio de consultor de crises: sabe aquele
trecho “jornalistas adoramos…” que aparece uns parágrafos ali atrás? Pois é
perversidade pura. Uso a primeira pessoa do plural para me chamar de
jornalista, você reparou? Mas os jornalistas acham que eles são eles e que
caras como eu são caras como eu. Então, esse comentariozinho largado ali é uma
ofensa grave para alguns. Rezam os bons costumes que não somos do mesmo ramo.
Será? Mas o legal, para você, é ver como um pequeno caco invisível jogado num
texto, meio sem querer, pode ser um contrabando mortal. Será que eu fui
imparcial, neutro? Se me perguntarem, eu direi que fui, embora isso não tenha
muita importância. Afinal, eu não sou jornalista.
Sunny Isles
Flórida
Junho de 2016
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