quarta-feira, 30 de novembro de 2016

ENTRE A GLÓRIA E A VERGONHA

Do UOL
Livro de Mário Rosa
O UOL oferece o download gratuito de todos os capítulos do livro em PDF, para facilitar a leitura em dispositivos móveis como o kindle.
Uma das coisas que mais me irritam nesses livros de gestão e de carreiras é que ninguém fala do acaso. E digo isso não por acaso.
Trinta anos atrás, antes que eu e você imaginássemos nos encontrar por aqui, um evento casual foi determinante para construir tudo o que você vai ler daqui pra frente.
Tava zanzando pela Universidade de Brasília, onde estudei, e não sei por que cruzei com uma palestra do escritor peruano Mario (meu xará, meu Deus, percebo só agora) Vargas Llosa.
Jornalistas não são intelectuais. Raramente são. Não conheci nenhum. Escrevemos como escrevem os autores de verdade, esses caras iluminados que criam mundos na literatura. Mas a distância que separa um texto jornalístico, por melhor que seja, a começar pelo meu, de um texto literário é a mesma entre a de um cantor de boteco e o Pavarotti. Nada contra os cantores de boteco, aliás.
Mas, considerando que não sou nenhum intelectual, foi bastante por acaso que acabei naquela palestra, naquele dia. Não sei o que fiz antes, não consigo lembrar o que fiz depois, não lembro nem mesmo da palestra em si. Vai dizer que não existe destino?
Sei que Vargas Llosa estava lá promovendo um livro dele, “A Guerra do Fim do Mundo” (será coincidência?).  É um alentado volume sobre a Guerra de Canudos. Alguém na plateia, impressionado com a riqueza de detalhes da obra, perguntou ao escritor como ele havia guardado tantas minucias. Anotações? Gravações? O quê?
Ele respondeu que percorrera o itinerário todo, conversando com todo mundo sem anotar nada, sem registrar nada. E disse, eu me lembro (a rigor só me lembro disso):
- Achei que só ia guardar na memória o que fosse importante. O que eu esquecesse é porque não valia a pena guardar.
E aí é que tá o destino nisso tudo. Ouvi aquela coisa  e ela ficou guardada na minha cabeça, sem eu lembrar, esse tempo todo. Vivi a vida, fui em frente e somente quando fiquei grávido deste livro é que esse fragmento ressurgiu. Ele estava ali alojado para o dia em que eu pudesse compreendê-lo.
Este livro segue rigorosamente esse método aleatório que eu ouvi naquela palestra antiga. Foi aquela frasezinha, jogada ali no meio do nada, ouvida por mim e guardada por esse tempo todo, que ligou a ignição que me conduziu nesta narrativa.
Atenção, meninos e meninas, guardem o que este cara tem para lhes dizer: às vezes, um evento banal que você viveu pode ganhar sentido um dia.
O tempo é uma linha que precisamos viver para conectar os pontos.
Nossa! Nada mau para um cantor de boteco…
Se há uma coisa boa em ter vivido uma vida, sobretudo se no meio ela foi interessante, é chegar a um certo ponto e poder conectar várias coisas  dispersas. É um mosaico, cheio de  pedacinhos de coisas diferentes que se juntam num certo momento e formam um todo.
E aí, como na palestra que não sei por que vi, mas agora sei, esses fragmentos vão se juntando a outros e, no final,  você tem uma vida cheia de cacos de vidro de diversas cores, e a sua memória cola essas pecinhas todas naquilo que um dia descobre ser você. Ou ter sido você. Hoje tenho certeza de que eu fui eu. Pelo menos, até onde sei.
Existem diferenças entre memórias e biografia. Biografia é coisa pra gente grande. Memória pode ser de qualquer um. Não acho que você vá ler a minha história, nem a História, embora tenha uma porção de estória de gente famosa aí no meio.
Acho que isso lhe oferece acesso a uma vida um pouquinho fora do normal. Só isso. Tomara que goste.
Tava lá pelos 30 anos quando já tentava decifrar esse mistério das lembranças: por que a gente lembra de uma cena, de um momento qualquer da infância ou do passado, e não tem a menor ideia do que aconteceu antes ou depois?
Desenvolvi minha interpretação particular desse fenômeno. Sabe, naqueles filmes, quando há um naufrágio e o sobrevivente chega a uma ilha deserta e põe uma mensagem na garrafa e a arremessa ao mar? A garrafa vai indo, seguindo as correntes, até que, um dia, chega ao continente e alguém volta para salvar o náufrago.
Acho que as lembranças isoladas e pontuais são essas garrafinhas que mandamos pra nós mesmos, pra que um dia, quando sejamos “grandes”, voltemos até nós pra nos salvarmos. Você vai ver uma porção de garrafinhas minhas boiando por aqui. Quem sabe você se encontra por aí?
Uma das delícias deste livro para mim foi a forma como ele nasceu: ele simplesmente nasceu. Eu não o fiz. Só tive que aguardar a gestação. Alguém tinha de digitar os teclados. Meu corpo fez isso. Não escrevi. Fui, acho, o primeiro leitor.
Sempre tinha ouvido falar que muitos autores de primeira escrevem sem planejar nada. O livro vai surgindo e eles vão navegando. Morria de inveja quando ouvia isso. Tudo bem que falar da minha vida é infinitamente mais fácil do que fazer ficção, mas senti um pedacinho desse prazer de ir do nada para o lugar nenhum nesta escrita. Tudo caiu da árvore: ploft!
Uma das poucas coisas chatas de ter escrito livros era que, volta e meia, um ou outro perguntava: “Quando é que sai o próximo?”.
“Sair como, se ainda não entrou?”, perguntava eu de volta. Este livro se formou dentro de mim, sem eu saber, e saiu de parto natural, mas apressadamente. Eu o escrevi em duas semanas.
Lembrei de quando visitei um monumento de 500 colunas de concreto, cheias de ornamentos delicados, feitas pelo meu irmão e amigo, o pintor Siron Franco. Era uma obra para comemorar o quinto centenário do descobrimento. Uma coluna para cada ano. Perguntei como se sentia depois de realizar algo tão prodigioso. “Tá vendo todas essas toneladas aí? Isso é tudo loucura que tava dentro da minha cabeça. Agora não tá mais”, disse-me Siron. Ao escrever, aqui, finalmente senti o que ele quis dizer.
Uma coisa boa foi quando eu percebi qual deveria ser a “voz narrativa” que iria contar a história. Nossa! Jornalistas adoramos, de vez em quando, frases gongóricas. Voz narrativa é apenas uma forma de chamar o jeito de escrever. O narrador aqui é um cara que soltou um pouco a franga. Não queria adotar aquele tom de pinguim de geladeira que você já viu por aí.
Meus outros livros eram todos coisa de engenheiro: começavam estruturados, subdivididos, tudo previamente concebido, o que dizer em cada capítulo, quantos capítulos etc. Este aqui é coisa de arquiteto: surgiu uma forma e, depois, que se danem os calculistas para colocar tudo de pé.
Não tenho nada contra a literatura corporativa. Nos tempos em que a nobreza reinava dos castelos, saiu um Maquiavel. Agora que ela mora nos escritórios, é natural que surja um Warren Bufett. Cada um na sua. Mas quis quebrar um pouco o tom de certeza que existe nesses livros que se passam na pessoa jurídica. Espero ter conseguido, ao menos um pouco.
Não fui um personagem relevante e, muito menos, testemunha ocular da História, ao menos à altura desse título pomposo. Passei por uma porção de coisas simplesmente porque estava lá.
É por isso que me considero uma espécie de camareiro que vivia no Palácio de Versalhes.
(Vou explicar isso aqui um pouquinho mais. É porque jornalistas são obrigados a “contextualizar” coisas, partindo sempre do pressuposto de que o leitor é um imbecil. Se você não se acha assim, pule o próximo parágrafo).
Versalhes era a sede do poder real francês, símbolo do rei sol, Luís XIV. O mundo girava em torno da nobreza e, no centro dela, estava o rei.
Capitais, de alguma forma, são sempre Versalhes. Capital é uma cabeça cercada de gente por todos os lados. A capita, no caso, é o rei ou o nome que se dê a ele.
Vivi em nossa Versalhes cabocla a minha vida toda. Quando escrevo este livro, Brasília tem 56 anos, eu 52.
Expandindo o conceito de “capital” para o significado de “elite”, vivi profissionalmente no meio disso ou de parte disso, na minha idade adulta.
Sempre tive muito claro qual era o meu papel: eu era um lacaio. Nobres eram os que eu servia. Podia me vestir parecido; podia morar em aposentos patinados que a choldra considerasse cortesãos; podia comer as migalhas dos majestosos banquetes; podia até ser confundido e ir parar na guilhotina. Mas eu não era nobre. Era serviçal. E, como era um empregado doméstico e de confiança, pude circular por Versalhes inteira, com o meu disfarce de consultor de crises.
O meu é o relato de um camareiro.
Nota pé de prefácio de consultor de crises: sabe aquele trecho “jornalistas adoramos…” que aparece uns parágrafos ali atrás? Pois é perversidade pura. Uso a primeira pessoa do plural para me chamar de jornalista, você reparou? Mas os jornalistas acham que eles são eles e que caras como eu são caras como eu. Então, esse comentariozinho largado ali é uma ofensa grave para alguns. Rezam os bons costumes que não somos do mesmo ramo. Será? Mas o legal, para você, é ver como um pequeno caco invisível jogado num texto, meio sem querer, pode ser um contrabando mortal. Será que eu fui imparcial, neutro? Se me perguntarem, eu direi que fui, embora isso não tenha muita importância. Afinal, eu não sou jornalista.
Sunny Isles
Flórida
Junho de 2016
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