Roberto Romano, O Estado de S.Paulo
Uma foto possui a qualidade de falar aos olhos e à mente.
Ela mostra o real sentido da palavra “evidência”: o que aparece de modo
insofismável. No século 20 algumas fotografias mostraram ao mundo fatos graves
e ridículos, terríveis e comoventes. Recordo algumas delas: a menina que foge
do napalm, no Vietnã; o beijo dos enamorados após a 2.ª Guerra Mundial, nos
EUA; o vestido de Marilyn Monroe que se ergue por virtude do vento; a figura de
Trotsky cortada na foto por ordem de Stalin; o horror de corpos quase mortos
nos campos nazistas. Tais imagens testemunham a brutalidade humana, mas também
exibem instantes de frágil ternura, inteligência ou estupidez.
Em formas televisivas ou fílmicas, além da evidência existe
a vantagem das figuras em movimento, inclusive e sobretudo no campo da face.
Esta última tem sido um meio de estudos filosóficos, artísticos (especialmente
no teatro), políticos importantes. Em momentos pouco felizes da ciência, como
nas teses avançadas por Lombroso, a cara revelaria o caráter das pessoas, suas
mazelas escondidas. Em outro sentido, Diderot, pai das Luzes democráticas,
utilizou muito o livro de Le Brun sobre as paixões reveladas na face. Charles
Darwin tem um contributo relevante para o tema. As tentativas de velar a
linguagem do rosto, desde a mais remota vida em sociedade, encontram nas
máscaras o seu grande instrumento. Um capítulo essencial do clássico Massa e
Poder traz análises profundas de Elias Canetti sobre a maquiavélica dissimulação
permitida ao poderoso mascarado.
Os bisonhos e incultos políticos brasileiros não controlam a
técnica do mascaramento. A sua maioria exibe sem nenhum pudor o que lhe vai nas
entranhas, confiante na impunidade trazida pelo indecente privilégio de foro.
No dia 23 de novembro último, O Estado de S. Paulo
apresentou na primeira página uma foto estarrecedora. Deputados riem às
escâncaras em companhia do então ministro Geddel Vieira Lima. Este proclamara
que “não havia nada de imoral” em conversar sobre assuntos privados com um
colega, em proveito próprio. O quadro exibido no jornal mostra explícito
deboche das leis e do povo soberano. Temos nele uma visão completa das pessoas
que dominam nossas instituições políticas. Segundo Milan Kundera, “o riso é o
domínio do diabo”. Nem todo riso, no entanto. Existe, diz ainda o romancista, o
riso dos anjos, movido pela admiração da bela ordem dada ao universo pelo ser
divino. A gargalhada demoníaca mostra a quebra daquele ordenamento, o absurdo
entronizado nas coisas mundanas (O Livro do Riso e do Esquecimento). A pândega
dos deputados, a zombaria e o desprezo pelos cidadãos comuns, traz o selo do
Coisa Ruim, do Não-sei-que-diga. Renan Calheiros piorou a dose ao reduzir o
episódio a um caso de hermenêutica. Caolha como todas as demais por ele
efetivadas, sobretudo no plano da ética pública.
Certa feita a imprensa trouxe notícias bem fundadas sobre o
uso, na Câmara dos Deputados, de verbas para o bem-estar de prefeitos e
hóspedes de parlamentares. Entre as comodidades e os serviços, a prostituição.
Na semana em que a denúncia invadiu páginas de jornais e telas da TV, apareceu
outra novidade: a Mesa da Câmara providenciava nova leva de cargos em comissão
para servir aos parlamentares. Sem apurar o primeiro escândalo, veio o outro,
urdido em silêncio. Um jornalista da TV Record entrevistou Inocêncio de
Oliveira. Este negou, rindo muito, a existência de qualquer ato visando a criar
cargos. Deu adeus aos brasileiros, virou as costas e seguiu adiante, rindo. Na
tela, apareceu o documento oficial criando os cargos.
A mentira e o deboche suscitaram minha indignação. Escrevi
um artigo intitulado, justamente, O prostíbulo risonho. Ele me valeu muito ódio
dos chamados representantes do povo. Um deles me processou, com apoio de seus
iguais. Na oitiva das testemunhas, um auxiliar do acusador assim falou ao jovem
magistrado: “Gosto muito do professor Roberto Romano. Mas ele abusou da
escrita. Imagine, Excelência, que o professor afirmou existir corrupção no
Congresso Nacional!”. Nem o juiz pôde conter o riso, agora angélico.
As gargalhadas dos “nossos representantes” seriam apenas
ridículas se não gerassem lágrimas de famílias brasileiras aos milhares A
corrupção retira da economia, das políticas públicas, da vida nacional bilhões
para lucro dos que deveriam zelar pelo bem comum. Desde a Grécia, o pensamento
ético e jurídico ocidental define a prática de usar os bens coletivos em
proveito próprio como tirania. O governante correto “guarda a piedade, a
justiça, a fé. O outro não tem nem Deus, nem fé, nem lei. Um tudo faz para
servir ao bem público e manutenção dos governados. Mas o outro tudo faz para
seu lucro particular, vingança ou prazer. Um se esforça por enriquecer seus
governados, o outro só eleva sua casa sobre a ruína dos dirigidos (…) um se
alegra ao ser avisado em toda liberdade, e sabiamente corrigido, quando falha.
O outro não suporta o homem grave, livre e virtuoso (…) um busca pessoas de bem
para os cargos públicos. Mas o outro só emprega os piores ladrões para os
utilizar como esponjas” (Jean Bodin, Os Seis Livros da República, capítulo IV).
Em A República, ao desenhar a tirania Platão afirma que o
péssimo governante realiza uma purga invertida no corpo político: expulsa os
cidadãos livres e bons e usa os salafrários como sua base política. Heinrich
Heine, poeta lúcido, disse certa feita: “Quando penso na Alemanha, à noite,
choro”.
Termino citando um baiano que merece respeito. Dada a
desfaçatez exibida na política brasileira, Castro Alves retomaria seus versos
candentes: “Mas é infâmia demais! (...) Da etérea plaga/ Levantai-vos, heróis
do Novo Mundo!/ Andrada! arranca esse pendão dos ares!/ Colombo! fecha a porta
dos teus mares!”.
Autor de 'Razão de Estado e Outros Estados da Razão',
Editora Perspectiva
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