Editorial, O Estado de S.Paulo
Sob o silêncio quase encabulado dos que sabem estar lidando
com matéria de comprometedor valor moral, a Comissão Especial de
Desenvolvimento Nacional do Senado aprovou projeto do senador Ciro Nogueira
(PP-PI) que legaliza a exploração de jogos de azar no País. O relatório do
senador Fernando Bezerra (PSB-PE) agora deverá ser submetido ao plenário da
Casa.
O texto propõe a legalização de atividades como o jogo do
bicho, bingos, apostas por meio eletrônico, jogos praticados em cassinos,
apostas em corridas de cavalos, entre outras modalidades. Assessores do governo
sugerem que parte da receita advinda da tributação dos jogos seja destinada à
saúde, segurança ou outra área que confira uma aura de candura a uma atividade
de natureza perniciosa.
Trata-se de tema tão desgastado como os argumentos dos que o
defendem, centrados na alegação de controle e fiscalização pelo Estado de uma
atividade praticada, legalmente à luz do dia, no aumento da receita tributária,
na geração de empregos e incentivo ao turismo. O ministro do Turismo, Marx
Beltrão, declarou apoio ao projeto.
Para defendê-lo, o relatório chega à desfaçatez de invocar o
“interesse público”. Para justificar a legalização do jogo do bicho e a
extinção dos processos criminais em andamento, relacionados à batota, o texto
vai além: “Centenária, resistindo a tudo e a todos, a prática contravencional
persiste indene à repressão estatal”. Ora, a incapacidade do Estado em combater
um ilícito não pode, jamais, servir como argumento de defesa para sua
legalização. Mata-se e rouba-se desde que o mundo é mundo, nem por isso se
pensa em regulamentar o livre exercício dessas duas atividades. Além disso, se
a falência do Estado no combate a uma atividade criminosa está comprovada, como
se pretende que esse mesmo Estado seja eficiente fiscalizando o exercício da
mesma atividade sob cobertura legal?
Na história recente do País, não há experiência envolvendo
jogos de azar em que não tenham sido observadas fraudes e desvios de
finalidade. Até as loterias oficiais, controladas pela Caixa Econômica Federal,
já foram usadas para lavagem de dinheiro. A legalização dos jogos de azar não
terá o condão de transformar a realidade do meio social onde eles já são
praticados ao arrepio da lei. Áreas conflagradas continuarão sendo cenários de
sangrentas disputas pelo poder entre mafiosos, empresas de fachada continuarão
lavando dinheiro sujo e não é crível que os “empresários” hoje clandestinos se
tornem respeitáveis empreendedores legalizados no setor de turismo e
entretenimento, recolhendo todos os tributos devidos. Os que hoje atuam fora da
lei precisarão apenas de algum tempo para o ajuste à nova realidade,
encontrando outras formas de continuar explorando suas lucrativas atividades
criminosas.
Como se o Estado já não estivesse inchado o bastante, o
projeto ainda prevê a criação de uma agência reguladora para fiscalizar o
funcionamento do setor, nos moldes do que fazem outras agências. A incorporação
de mais um órgão a já paquidérmica administração pública federal por si já
seria um disparate. Some-se o fato de a nova agência abrir espaço para toda
sorte de ingerência política nem sempre movida pelo melhor espírito público e
estará pronto mais um canal de drenagem de dinheiro público.
Ao contrário do que apregoam os entusiastas da legalização
dos jogos de azar, as bênçãos da lei não trarão bem-estar para as famílias, não
contribuirão para o desenvolvimento da sociedade e, em última análise, não
farão o Brasil avançar na direção de um estado de justiça, ética e paz social.
Não se está diante de um óbice moral apenas – aliás, bastante expressivo
tendo-se em conta a degradação familiar que os jogos de azar causam –, mas
também diante de uma questão de projeto de Estado. Com a eventual legalização
da jogatina, o Brasil patrocinará o enriquecimento de uns poucos e fechará os
olhos para milhões de cidadãos que terão suas vidas definidas por algo fora de
seu controle. Esta é uma aposta certa, a sociedade perde.
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