Luiz Cláudio Latgé, O Globo
Como resumir um ano de tantas notícias surpreendentes em uma
só palavra? O que têm em comum a saída da Inglaterra da União Europeia, a
eleição de Trump, as guerras no Oriente e as nossas escolhas políticas? Alguma
coisa pode conectar tudo isto — além, do aquecimento global que nos torra os
miolos? Pois o Dicionário de Oxford acaba de nos dar uma valiosa contribuição
para entender o mundo em que vivemos. Escolheu como palavra do ano uma
expressão pouco conhecida: pós-verdade.
O serviço da Universidade de Oxford tem autoridade para
tanto. O dicionário começou a ser concebido em 1857. A tarefa foi entregue ao
professor James Murray, em 1879. Cinco anos depois, ainda não tinham saído da
letra “a”. Somente em 1884 os primeiros volumes foram lançados. O alfabeto só
seria coberto em 1928, com 400 mil palavras. Essas referências ajudam a
entender que não se trata de um dicionário comum. Ele tenta registrar as
palavras desde a sua origem até seu uso corrente nas ruas, como elas ganham
novos significados e se incorporam às nossas vidas.
Post-truth. É um adjetivo. Não chega a ser novo. Tem uma
década, pelo menos. Mas os estudiosos de Oxford perceberam que nos últimos
tempos seu uso passou a ser mais frequente: em artigos acadêmicos, por
escritores, nos jornais e, finalmente, nas ruas. Como em 2015, quando os
“emojis” dominaram o mundo.
Pela definição do dicionário, pós-verdade quer dizer “algo
que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência para
definir a opinião pública do que o apelo à emoção ou crenças pessoais”. Em
outros termos: a verdade perdeu o valor. Não nos guiamos mais pelos fatos. Mas
pelo que escolhemos ou queremos acreditar que é a verdade.
A palavra se tornou recorrente depois da surpresa do Brexit
e da eleição “sangrenta” nos Estados Unidos. Mas pode perfeitamente ser
aplicada ao nosso momento político. Para o jornalismo, é uma má notícia. Embora
seja quase folclórico em nossas redações citar algum dono de jornal (e os nomes
variam) que teria por vício repetir diante de alguma noticia que não queria
saber dos fatos, mas da versão que o jornal iria publicar.
O terreno da internet tem se revelado fértil para a
propagação de mentiras — sempre interessadas —, trincheira dos haters. Levamos
tanto tempo para estabelecer uma visão “científica” dos fatos, construir a
isenção do jornalista, a independência editorial e, de repente, vemos que o
debate político se dá entre “socos e pontapés”. A pós-verdade arrasta a
política, o jornalismo, a justiça, a economia, a nossa vida pessoal...
Seria prudente resgatarmos o território da verdade.
Substantivo feminino. Simples assim. Expressão dos fatos, e fatos podem ser
verificados. Esse é o papel do jornalismo. Ou torcermos para que no ano que a
palavra escolhida pelo Dicionário de Oxford não seja parecida com desastre.
PS: A história do dicionário de Oxford está bem contada no
livro “O professor e o louco”, de Simon Winchester, que relata o trabalho de um
dos colaboradores do professor James Murray, William Chester Minor, o louco do
título. Durante todos os anos que contribuiu para o dicionário selecionando
citações para ilustrar o uso das palavras, ele esteve internado numa clínica
para doenças mentais.
Luiz Cláudio Latgé é jornalista
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