Artigo de Fernando Gabeira
No mundo que enlouquece rápido, o Brasil tem feito seu dever
de casa. Nem tudo aqui parece fazer sentido. Sou, por exemplo, favorável ao
avanço das investigações da Operação Lava Jato até que o tema seja esgotado.
Sou também contra o abuso de autoridade, do guarda da esquina ao presidente da
República. No Brasil esses temas parecem contraditórios. A sensação que nos
passa é de uma tragédia, no sentido que Hegel deva a essa palavra: um
inevitável choque do certo contra o certo, situações em que, independentemente
da escolha, sempre cairemos num erro.
Olhando de perto as coisas ficam mais claras. A lei do abuso
de autoridade está sendo conduzida por Renan Calheiros e será votada por gente
que, como ele, está correndo da polícia por implicações em vários crimes. Ela
não é urgente. Nem se pode dizer que a existência da Lava Jato a justifique. A
quase totalidade das questões levantadas contra a operação foi rejeitada pelo
Supremo. Renan Calheiros convidou Sergio Moro para debater a lei de abuso da
autoridade. No fundo, quer a presença do juiz para legitimar um processo que
ele controla, pois conhece seus pares e sabe que a grande tarefa do momento é
neutralizar a Lava Jato. Renan Calheiros deveria ser julgado e preso. No
entanto, decidiu enfrentar o Judiciário.
Sua ideia de criar uma comissão para coibir super salários é
correta. Os supersalários são ilegais. É mais uma situação delicada na qual
precisamos navegar. Não se pode bombardear a ideia de aplicação da lei nem
considerá-la uma afronta ao Judiciário. É apenas uma lei que não pegou, mas
precisa pegar.
É muito possível que Renan queira enfrentar o Judiciário. E
que conte com a ajuda do Palácio do Planalto. Mas aí, no meu entender, reside a
loucura principal. Renan tem 12 processos no Supremo. Qualquer um deles poderia
resultar em sua cassação e numa temporada na cadeia. No entanto, ele desafia e
até ironiza seus aliados mais discretos, como Jucá, dizendo que já esgotaram
sua cota de coragem. Não há dúvida de que Renan está sendo corajoso, jogando
sua carreira e liberdade enquanto os outros se escondem.
Mas se Renan é tão corajoso, o que dizer do Supremo? Ostenta
o oposto simétrico da coragem?
A cúpula do PMDB, Renan à frente, decidiu enfrentar a
Justiça, dobrá-la de acordo com seus objetivos. Para isso conta com o exército
de investigados por crimes diversos, gente que também deveria já estar
condenada pelo próprio Supremo. Sendo bastante realista, é possível concluir
que, se os corruptos vencerem a parada, triunfaram, na verdade, farão do STF um
poder artificial, sem a garra necessária para enfrentar as quadrilhas que
habitam a mesma praça.
Outra loucura é a história de anistiar o caixa 2. Sempre
defendi a tese de que a História não recomeça do zero, que é impensável
destituir todos os políticos, abrindo espaço para aventuras mais perigosas
ainda.
A delação da Odebrecht é uma promessa de fim de mundo. Mas
não será. Entre os nomes da lista, há os que receberam dinheiro em troca de
favores oficiais – consequentemente, prejuízo para o País. Mas há também os que
talvez tenham recebido sem dar nada em troca, até registrando as doações nas
contas de campanha.
Entre os que não registram doações, há os que recebem
dinheiro legalmente obtido pelos doadores. E há os que recebem dinheiro de
origem ilegal, como, por exemplo, nas áreas do tráfico de drogas e milícias.
Tudo isso, de alguma forma, já é contemplado pela legislação
brasileira. Fazer uma lei a toque de caixa para anistiar precisamente o caixa 2
pretérito não é a melhor saída para enfrentar o problema da extinção da espécie.
O mais prudente é esperar a delação da Odebrecht, desejando que saia o mais
rápido possível, e, em função da realidade, separar mortos e feridos, arranhões
e fraturas expostas.
As leis de abuso da autoridade e as que definem melhor o
comportamento eleitoral são necessárias para o País. Mas podem esperar que as
coisas se esclareçam. Depois da delação da Odebrecht, por exemplo, ficará bem
claro se o Congresso tem legitimidade para votar algo sobre o caixa 2. É
possível que os dados nos convençam a permanecer com as leis existentes até que
ele se renove em 2108.
Quanto ao abuso de autoridade, a lei deve ser modernizada.
Mas, no meu entender, não é esse o ponto principal. O problema no Brasil é a
indiferença. Basta olhar para todos os cantos com o rigor com que advogados,
políticos e imprensa olharam para a Lava Jato para perceber que o buraco é mais
embaixo: o abuso de autoridade é uma realidade cotidiana tão presente que
parece um fato da natureza. Lula já reclamou até na ONU: milhares que sofreram
real abuso não chegaram nem à delegacia da esquina.
Julgar e prender Renan Calheiros, acabar com os
supersalários, onde quer que existam no Estado, falar de legislação sobre caixa
2 após a delação da Odebrecht e, finalmente, avaliar abuso de autoridade com os
olhos de um cidadão, e não de bandidos fugindo da polícia, são passos que, no
meu entender, trariam mais lógica ao processo.
A não ser que esteja um pouco louco também, o que é possível
neste mundo caótico.
Como entender o argumento de Temer contra a prisão de Lula?
Segundo ele, não é bom quando movimentos sociais questionam o Judiciário. Se
for assim, líderes de movimentos sociais têm imunidade. E se consideramos a
expressão movimentos sociais em sentido mais amplo, a imunidade vale para
líderes religiosos, cantores com multidões de admiradores – enfim, damos uma
cotovelada na República, como presente de aniversário. No fundo, ele queria
dizer “não façam isso no meu plantão, já está confuso demais”. Mas teria de
encontrar outro argumento ou, como fazem os presidentes, não se manifestar
sobre um processo em curso na Justiça.
Se queria ajudar Lula, acabou prejudicando, pois associa sua
liberdade não a presumível inocência, mas à fúria dos movimentos sociais. Se
queria atemorizar os juízes, acabou provocando. É duro substituir Dilma nos
desastres verbais, mas Temer está fazendo todo o possível.
Artigo publicado no Estadão em 18/11/2016
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