Artigo de Fernando Gabeira
O mundo não acabou, apenas ficou mais louco. Esta frase, de
um dirigente alemão, é precisamente o que penso depois da vitória de Donald
Trump. Mas, às vezes, sou tentado a revê-la quando olho o Rio de Janeiro, lugar
onde moro, ameaçado pelo caos e pela anarquia. Todos se lembram do Brexit, o
rompimento da Inglaterra com a comunidade europeia. Também ali, imprensa e
pesquisa foram traídos pelas circunstâncias. Esperavam um resultado que não
veio.
O que há de comum nas supresas de Trump e do Brexit é a
confiança na racionalidade inevitável da globalização. O filósofo John Gray
escreveu muitas vezes sobre o tema. Para ele, o comunismo internacional e a
expansão planetária do livre comércio são duas utopias nascidas do Iluminismo.
Discordo apenas num detalhe: o livre comércio não se impõe à força, ninguém é
obrigado a tomar Coca-Cola ou comprar tênis Nike.
Mas a verdade é que a globalização produziu perdedores nos
países mais ricos e contribuiu para que alguns estados mais frágeis se
dissolvessem em guerras fratricidas. As ondas de imigração levaram medo e
inquietude. Na Inglaterra, temia-se pelo emprego e também pelos leitos de
hospital e assistência médica.
Nos Estados Unidos, Trump denunciou acordos importantes como
o Nafta e prometeu construir um muro na fronteira com o México. No seu
discurso, um outro fator também aparece: o medo da desordem, da presença de
criminosos que possam perturbar a paz americana, igualando o país a outros
lugares caóticos do mundo.
Walt Whitman, num poema de 1855, dizia que os Estados Unidos
é um país que não se representa por deputados, senadores, escritores ou mesmo
inventores, e sim pelo homem comum. Durante quase toda a campanha, observando
as entrevistas dos eleitores de Trump, não havia neles apenas o medo dos
efeitos da globalização, mas também uma repulsa pelos políticos tradicionais.
Alguns, mesmo discordando das bobagens que ele dizia, afirmavam: pelo menos é
sincero, ao contrário dos profissionais. Outros mais exaltados gritavam
abertamente para as câmeras: foda-se o politicamente correto.
A suposição de que o progresso triunfa sempre é um
contrabando religioso na teoria política. A história não é linear. E talvez os
formadores de opinião e pesquisadores tenham perdido o pé por acharem,
equivocadamente, que o triunfo sempre estará ao lado do que consideramos certo.
É preciso mais humildade, mais presença na vida das pessoas para compreender
que a globalização produz ressentimentos e que muitos anseiam pelos “velhos e
bons tempos” de sua experiência nacional.
O caso do Rio deveria ser tratado à parte. Mas é um estado
falido, algo que também não é estranho à história mundial. O Haiti é aqui, já
dizia, profeticamente, a canção de Caetano e Gil. Falavam da Bahia, mas o verso
inicial é válido para todos: pensem no Haiti.
Uma grande contradição na falência do Rio é o fato de que os
mesmos políticos que arrasaram o estado são os responsáveis para liderar sua
reconstrução. A falta de legitimidade torna a tarefa quase impossível. Depois
de tanta incompetência e corrupção, grande parte das pessoas gostariam de
vê-los na cadeia, e não no comando do estado.
Eles não vão renunciar. Será preciso que a sociedade se
movimente, sem quebradeiras, sem gritos, para que as coisas voltem à
normalidade. Ela também se deixou levar pela febre do petróleo. Em 2010, quando
disputei com Cabral, já era evidente o colapso do sistema de saúde, a corrupção
assustadora. Naquele momento, percebi que muitos intelectuais, alguns amigos
queridos, continuavam seduzidos por um governo que mascarava a incompetência e corrupção
com os abundantes recursos do petróleo. A sedução não envolveu apenas
intelectuais críticos, mas todo o establishment. Hoje, os manifestantes gritam
Bolsonaro, quando invadem a Assembleia. Como são policiais, e a família
Bolsonaro sempre apoiou a corporação, não significa ainda um sentimento mais
amplo na sociedade carioca, embora Bolsonaro, pai e filho, já sejam campeões de
voto.
Será preciso humildade para compreender o que se passa,
independentemente de nossas projeções teóricas sobre futuros luminosos. A
cidade maravilhosa, cosmopolita etc. já está nas mãos de um grupo cristão que
tende, ao contrário do Velho Testamento, a defender não uma ética particular,
mas um caminho que deva ser universalmente aceito.
A gravidade da crise no Rio, caso sobreviva à quadrilha que
o governou, e caso a sociedade não se esforce para buscar soluções, pode nos
levar a um tipo de dissolução que encha as ruas de fantasmas perambulando com
suas cestas de pequeno comércio, gangues dominando amplos setores da cidade e,
sobretudo, saída em massa para o interior, para outros estados, para fora do
país.
Pensem no Haiti, diz a canção. Precisamos mais do que isso:
pensar no Haiti e fazer algo para evitar o mesmo destino.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 13/11/2016
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