Artigo de Helena Chagas, via Blog do Noblat
Hillary Clinton deu um tapa com luvas de pelica em Donald
Trump em seu discurso de derrota. Na reta final da contagem, ela ficou com mais
votos populares do que o adversário, embora tenha feito menos delegados e, por
isso, perdido a eleição. Diferentemente do que teria feito Trump, porém, não
contestou os resultados. Dignamente, desejou sucesso a ele: "Donald Trump
vai ser nosso presidente. Nós devemos a ele uma cabeça aberta e uma chance para
liderar. Nossa democracia constitucional garante a transferência de poder em
paz. Nós valorizamos isso", disse Hillary, num gesto de apreço às
instituições democráticas.
O problema talvez seja justamente este: Donald Trump vai ser
o presidente. Ouvir isso da boca de Hillary, diante de uma estupefação de
escala mundial, não vai levar nenhum dos eleitores do bilionário ao
arrependimento, mas dá a quem está de fora uma desalentadora impressão de que
algo está errado. Pode ser uma correia arrebentada na engrenagem da democracia
representativa, ou certa ferrugem nas ferramentas disponíveis ao cidadão para
manifestar e fazer valer sua vontade. Seria, porém, injusto e até perigoso
jogar a culpa nas instituições da democracia. Afinal, mal ou bem, elas estão
funcionando - aqui, nos Estados Unidos e
em outros lugares onde têm acontecido coisas esquisitas.
A vitória de Trump nos deixa aquela mesma sensação passada
pelo resultados da votação do Brexit no Reino Unido e do plebiscito que recusou
a paz com as Farcs na Colômbia: tem alguma coisa errada aí. Mas quem somos nós
para fazer reparos a decisões tomadas democraticamente, pelo voto, por milhões
de pessoas que sabem onde lhes aperta o calo? Ninguém. O voto livre é a mais
sagrada manifestação da vontade popular, em qualquer época e lugar.
Ainda assim, com muito cuidado, podemos tentar refletir e
traçar paralelos. O mais óbvio deles é entre o sentimento que leva um eleitor a
votar, por exemplo, pela saída de seu país da União Europeia, por exemplo, e o
que leva outro a escolher um destrambelhado ultranacionalista, xenófobo,
preconceituoso e machista como Donald Trump para ser presidente da República
dos EUA. Há muito em comum entre eles, a começar pelo medo de perder o emprego
para um estrangeiro - se é que já não perdeu. Há a vontade de fechar as
fronteiras, expulsar os refugiados, deixar de dividir com estrangeiros seus serviços sociais, sobretudo
agora, que a crise apertou. Há uma clara recusa à globalização e ao
internacionalismo que tanto a União Européia quanto a ex-secretária de Estado
Hillary Clinton representam. Novos tempos, e só não vê quem não quer.
Um dos poucos sujeitos a insistir, há meses, que não havia
chance de Hillary derrotar Trump foi o cineasta Michael Moore. Em julho, ele
escreveu artigo para o Huffington Post, dizendo-se portador de más notícias,
sobre "os cinco motivos pelos quais Donald Trump será o próximo presidente
dos EUA". Segundo ele, a eleição de Trump não seria um acidente, e a
primeira das razões que citou foi "a matemática do Meio-Oeste, ou
bem-vindo ao Brexit do Cinturão Industrial". Ele se referia aos
trabalhadores do cinturão industrial de Michigan, Ohio, Pensilvânia e Wisconsin
(coincidentemente, este último elegeu os seis delegados decisivos para a
vitória de Trump), aqueles que perderam seus empregos com a transferência de
fábricas para outros países do Nafta, como México, e com outras políticas
comerciais.
Segundo Moore escreveu em julho passado, o que aconteceu no
Reino Unido com o Brexit iria acontecer lá, e o trabalhador americano que não
foi beneficiado pela lenta recuperação econômica do país nos últimos anos - que
gerou crescimento mas não distribuiu renda -
ia se vingar: "Vamos mostrar para todos eles, todos os que acabaram
com o sonho americano. Você não precisa concordar com Trump. Você não precisa
nem gostar dele. Ele é seu coquetel molotov pessoal para ser atirado na cara
dos filhos da mãe que fizeram isso com você!", escreveu o cineasta,
reproduzindo o que, descobre-se agora, ia na cabeça da média dos americanos. O
voto em Trump significaria, portanto, "chutar o pau da barraca", de
acordo com Moore.
Fica claro que esse é o sentimento. Mas depois que as coisas
acontecem, em mais um "espetáculo da democracia", não há o que fazer
a não ser lamentar. Não exatamente por que Trump foi eleito. Mesmo os mais
doidos candidatos mudam de discursoos ficam mais moderados quando descem do
palanque, e esse primeiro dia de eleito já produziu inflexão no discurso dele.
Além disso, as instituições norte-americanas, com Congresso forte e sociedade
vigilante e barulhenta, limitam as vontades e impõem suas agendas ao primeiro
mandatário.
O que se destaca, porém, em mais esse episódio, e que pode
nos servir até de lição para 2018, é a cada vez mais acelerada mudança no
humor, nos anseios e na vontade da maioria do eleitorado. Tanto aqui quanto
acolá, Europa, França e Bahia, há uma onda mundial, na qual as pessoas vem
andando de lado, no rumo da direita. Vota-se sobretudo contra alguém ou alguma
coisa. Crescem os outsiders e os não-políticos, como se isso fosse garantia de
boa gestão e honestidade. O que, obviamente, não é.
O mais lamentável de tudo, porém, é que saíram de vez da
cena política aquelas bandeiras relacionadas a valores como humanidade e
fraternidade, que, lá atrás, chegaram a conquistar corações e mentes: igualdade
de direitos, distribuição de renda, combate à pobreza e à fome. Quase não se
fala mais nisso. Fim das ilusões.
Helena Chagas é jornalista desde 1983. Exerceu funções de
repórter, colunista e direção em O Globo, Estado de S.Paulo, SBT e TV Brasil.
Foi ministra chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência
(2011-2014). Hoje é consultora de comunicação.
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