quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A ERA DA RENANCRACIA

Da ISTOÉ
José Renan Vasconcelos Calheiros, 61 anos, poderia ser apenas um cidadão brasileiro sujeito aos direitos e deveres estabelecidos pela Constituição. Dentre eles, a obrigação de cumprir determinações da Justiça, um dos Poderes que sustentam a República e o Estado Democrático de Direito. Mas Renan Calheiros (PMDB-AL) é presidente do Senado e, como tal, deu um tapa na cara da sociedade na última semana. Mostrou que não tem a obrigação de cumprir ordens do Supremo Tribunal Federal (STF), e ainda forçou o órgão a recuar e criar uma “meia sola constitucional”, nas palavras de um dos ministros, para que pudesse continuar no comando do Senado.
Renan se recusou a aceitar uma decisão liminar do ministro do STF Marco Aurélio Mello que o afastava do cargo e provocou uma crise institucional que colocou em risco a estabilidade da democracia e representou um verdadeiro escárnio à sociedade, principalmente ao cidadão comum que cumpre todos os seus deveres. O exemplo é péssimo: se uma decisão da Justiça me desagrada, posso desrespeita-la? “Qualquer liminar concedida por um juiz neste país não precisará ser cumprida. Precedente: STF”, ironizou um procurador da Operação Lava Jato. “A Constituição não trabalha com desobediência à ordem judicial. A solução está no cumprimento da decisão”, sentenciou o ex-ministro do Supremo Carlos Ayres Britto, em entrevista à ISTOÉ. Surpreendentemente, seus ex-colegas de tribunal não impuseram nenhuma punição a Renan pelo descumprimento da ordem judicial e ainda costuraram um acordão para salvar sua permanência na Presidência da Casa–mesmo sendo réu em uma ação penal e ainda responder a 12 inquéritos, a maioria da Lava Jato.
Desprezo às instituições
A origem da celeuma está em um julgamento do Supremo de 3 de novembro. Naquele dia, seis ministros da Corte formaram maioria no entendimento de que um réu não poderia continuar presidindo a Câmara ou o Senado, por estar na linha sucessória da Presidência da República. O julgamento, porém, foi interrompido por um pedido de vistas do ministro Dias Toffoli. Antes que a discussão fosse retomada, um outro julgamento realizado pelo Supremo em 1º de dezembro tornou Renan réu por peculato (desvio de recursos públicos) em uma ação penal que o acusa de ter despesas pessoais pagas por uma empreiteira. Como, no julgamento anterior, a maioria sinalizava que um réu não poderia ficar na linha sucessória da Presidência da República, a consequência natural seria mesmo o afastamento de Renan. Talvez se ele fosse um brasileiro comum.
Autora da ação que questionou a linha sucessória da Presidência, a Rede Sustentabilidade então provocou o ministro Marco Aurélio Mello, relator, a dizer se Renan poderia continuar no cargo após ter se tornado réu. Começaram aí os atropelos. O ministro Marco Aurélio tomou como base um julgamento inacabado para conceder uma decisão liminar (provisória) afastando o presidente do Senado, na noite da segunda-feira 5. Daí em diante, a situação institucional do País só piorou, chegando à beira do colapso. O oficial de Justiça Wessel Teles de Oliveira se dirigiu à residência oficial de Renan ainda na noite da segunda e foi alvo do menosprezo que o peemedebista destina às instituições. Apesar de enxergar Renan da porta da residência, uma funcionária lhe disse que ele não se encontrava. “Ato imediato, afirmei que a informação não corresponderia à verdade, uma vez que conseguiria apontar para a figura do senador caminhando em sentido oposto ao meu”, relatou o oficial de Justiça. A assessora do peemedebista pediu que ele fosse às 11h do dia seguinte intimar-lhe no Senado. Lá, o advogado-geral do Senado, Alberto Cascais, entregou ao oficial de Justiça um comunicado da Mesa Diretora do Senado no qual a instituição se recusava a cumprir a ordem judicial.
A Mesa Diretora é composta, dentre outros, pelo próprio Renan, pelo primeiro vice-presidente Jorge Viana (PT-AC) e pelo segundo vice, Romero Jucá (PMDB-RR). Todos assinaram o documento que afrontou o STF. Depois disso, a crise entre os Poderes chegou ao ápice e começou a circular nos bastidores a possibilidade de o Supremo mandar prender Renan pela desobediência. Mas os ministros preferiram costurar um acordo nos bastidores, em reunião comandada pela presidente do STF Cármen Lúcia, que teve o aval dos senadores da base aliada, preocupados com o impacto em votações de matérias de interesse do governo no Senado. Pelo acertado, o plenário do Supremo tomaria uma decisão política para preservar Renan Calheiros no comando do Senado. Em vez de ser punido, ele foi premiado. A imagem transmitida à sociedade foi a pior possível.
Na quarta-feira 7, em um julgamento de cartas marcadas, o plenário do Supremo decidiu por 6 votos a 3 manter Renan no comando. O entendimento foi que ele não poderá ocupar a Presidência da República no caso de viagem de Temer, mas também não precisa ser afastado da Presidência do Senado. O voto do ministro Marco Aurélio foi esclarecedor: “O pulo apontado como saída para o impasse, decorrente do fato de não se haver respeitado decisão do Supremo, (…) fere de morte as leis da República, fragiliza o Judiciário, significando prática deplorável. Ao fim, implica a desmoralização ímpar do Supremo”. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, também foi contrário à solução apresentada. “A prerrogativa constitucional é do cargo, não é da pessoa, e problemas pessoais não podem limitar as prerrogativas do cargo”, afirmou.
O episódio envolvendo Renan criou uma jurisprudência perigosa. Na quinta-feira 9, o prefeito de Barreiras (BA) Antonio Henrique Moreira se recusou a cumprir uma decisão liminar em favor do sindicato de servidores do município que o obrigaria a repassá-los 1% da folha salarial dos funcionários. Ao se negar a aceitar a medida judicial, o prefeito fez questão de mencionar o precedente aberto pelo presidente do Senado.
No fim da semana, o escárnio foi selado com a nota que o próprio Renan divulgou após a decisão do STF: “É com humildade que o Senado Federal recebe e aplaude a patriótica decisão do Supremo Tribunal Federal. A confiança na Justiça Brasileira e na separação dos poderes continua inabalada”. Confiança, porém, apenas quando a decisão lhe favorece.
“Entendi que você é um juiz de merda!”
O fato de o decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, ter sido o primeiro a votar na quarta-feira 7 pode ser interpretado como uma espécie de senha para disparar o acordão negociado nas horas que antecederam a seção. Afinal, fica muito mais fácil para os demais ministros justificarem seus votos, quando seguem o entendimento do mais experiente da Corte. E, Mello, votou de forma contrária ao que já havia manifestado em novembro, quando o STF decidia se um réu poderia ou não ocupar a linha sucessória da Presidência da República. Na ocasião, cinco dos 11 ministros já haviam votado a favor dessa tese, quando Dias Toffoli pediu vistas, paralisando o processo. Mesmo assim, logo depois do posicionamento de Toffoli, Mello resolveu declarar seu voto, o que não é comum na rotina do Tribunal. O gesto, no entanto, tinha um significado político: apesar do pedido de vistas, já havia maioria a favor da tese. Na quarta-feira, o decano mudou de ideia e votou pela permanência de Renan Calheiros na presidência do Senado, mesmo já sendo réu. Quem conhece os bastidores do STF sabe que essa não a primeira vez que o decano muda de opinião e vota de acordo com as conveniências do momento.
Na semana passada o site “O Antagonista” relembrou uma história contada no livro “Código da Vida”, de Saulo Ramos, ex-ministro do presidente José Sarney. Saulo relata uma desilusão sofrida com Celso de Mello. Quando Sarney decidiu candidatar-se a senador pelo Amapá, o caso foi parar no STF, já que os adversários impugnaram a candidatura. Mello votou pela impugnação, mas depois telefonou para Saulo para explicar-se. Saulo quis saber por que ele mudou o voto.
— É que a Folha de S.Paulo noticiou que Sarney tinha os votos certos dos ministros e citou meu nome como um deles (…) Votei contra para desmentir a “Folha”.
— Você votou contra o Sarney porque a “Folha” noticiou que você votaria a favor?
— Exatamente. O senhor entendeu?
— Entendi que você é um juiz de merda.
“Não participei do clube do Bolinha ou da Luluzinha”
Na noite de terça-feira 6, quando já se noticiava que havia um acordo para a manutenção de Renan Calheiros na presidência do Senado, o ministro Marco Aurélio Mello acrescentou no texto de seu voto um chamamento dos colegas à responsabilidade. “Disse que eles eram autores de suas biografias. E que as gerações futuras são implacáveis”, disse Marco Aurélio a ISTOÉ. Após o julgamento, o ministro que concedeu a liminar pelo afastamento do peemedebista foi ovacionado no aeroporto de Brasília e recebeu pedidos de selfies no Santos Dumont.
O sr. acredita que o STF ficou desmoralizado?
O Supremo ficou fragilizado. Falei muito nisso no voto, realcei para os colegas terem presentes as consequências. Fico triste porque agora vamos ter manifestações contra o STF.
Houve alguma reunião anterior ao seu voto?
Se houve acordo, eu não participei do clube do Bolinha ou do clube da Luluzinha. Não participo dessas reuniões e me pronuncio segundo minha consciência e nada mais. Não ocupo cadeira voltada a relações públicas.
Foi comentado que, ao conceder a liminar, o sr. teria jogado para a plateia.
Se eu jogasse para a plateia, eu não teria tanto voto vencido. Seria aquele que acerta sempre.
Mas o sr. acha que errou?
Não errei. Fui vencido, mas não convencido.
Como o sr. avalia a desobediência do senador Renan em não acatar a sua liminar?
É o fim. É impensável. É crime.
Mantido no poder, fica notório o poder de Renan Calheiros?
Tudo isso revelou que ele tem um poder enorme. Quem sabe seja realmente um anjo, e todos nós estejamos com uma visão equivocada.
Como o sr. recebeu a declaração do ministro Gilmar Mendes, que disse que sua decisão era indecente?
Eu fiquei perplexo. Foi gratuito. Se ele me acha maluco, Freud explica. Passou de todos os limites. 
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