Morreu nesta quarta-feira (14), na capital paulista, o
arcebispo emérito de São Paulo, cardeal dom Paulo Evaristo Arns, 95.
Ele estava internado no Hospital Santa Catarina desde o
último dia 28 com problemas pulmonares. Nesta semana, havia sofrido uma piora
em sua função renal e estava na UTI. A morte ocorreu por volta das 11h45.
Ao longo da vida, o frade franciscano Paulo Evaristo Arns
recebeu muitos epítetos.
Foi chamado de cardeal da liberdade, bispo dos oprimidos,
cardeal dos trabalhadores, bispo dos presos, bom pastor, cardeal da cidadania,
guardião dos direitos humanos e tantos outros.
Mas já ao final da vida, quando lhe perguntaram como
gostaria de ser lembrado, deu uma resposta singela: "amigo do povo".
Como padre, bispo e cardeal, lutou pela liberdade, ficou ao
lado dos trabalhadores e dos oprimidos, combateu em defesa dos direitos
humanos, mas foi, sobretudo, exatamente como gostaria de ser lembrado, um amigo
do povo.
Nesta condição, subiu morros, frequentou favelas,
incursionou pelas periferias e enfrentou os generais da ditadura para dar
proteção a perseguidos políticos —de religiosos a operários, de advogados a jornalistas.
Quando do assassinato do jornalista Vladimir Herzog por
agentes do governo, em 1975, comandou na Catedral da Sé um culto ecumênico que,
reunindo milhares de pessoas, acabou por se transformar num dos atos públicos
mais significativos da luta contra o regime militar instalado 11 anos antes no
país.
O golpe de 1964 colheu o frade franciscano dando assistência
religiosa aos moradores dos morros de Petrópolis (RJ). Lá chegara depois de uma
trajetória iniciada no dia 14 de setembro de 1921, quando nasceu na colônia de
Forquilhinha, região de Criciúma, em Santa Catarina. Teve 13 irmãos, quatro dos
quais (três freiras e um padre) se dedicaram também à carreira religiosa —sendo
Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança que morreu no terremoto do Haiti
em 2010, a mais conhecida.
Pela mãe, Helena, nutria uma enorme ternura, mas a admiração
reverencial pelo caráter do pai, Gabriel, salta das páginas autobiográficas do
volume "Da Esperança à Utopia - Trajetória de uma Vida" (Editora
Sextante, 2001).
Nas memórias, trata a mãe quase como santa e o pai como
ídolo. Identifica nele o "herói anônimo da não violência" que o
inspiraria pelo resto da vida.
Relata com dramaticidade -bom escritor que foi- o episódio
em que o velho descendente de alemães se coloca à frente de uma arma para
apartar uma briga entre irmãos no armazém da colônia, de sua propriedade.
Corajoso, líder e democrata -assim dom Paulo via o próprio
pai, em cujos exemplos, conta, baseou-se para implantar uma gestão
participativa na Arquidiocese de São Paulo.
Da infância herdou também, sobretudo da mãe, a profunda
religiosidade que o acompanharia para sempre.
Pois, apesar de ser mais conhecido, no Brasil e no mundo,
por suas ações políticas, dom Paulo dedicou seguramente a maior parte de sua
vida à pregação do Evangelho e à propagação da fé católica.
Estudou teologia exaustivamente e se especializou na
patrística -a história e a filosofia dos primeiros séculos do cristianismo. Foi
um homem culto.
O amor à cultura também vem da infância, por influência de
dois tios, Adolfo e Jacó, professores em Forquilhinha e declaradamente seus
mais queridos mestres.
Calçou sapatos pela primeira vez aos oito anos -antes, só
tamancos- e assim que conseguiu convencer seu pai, que o queria como sucessor à
frente do armazém da colônia, partiu para a o seminário menor franciscano de
Rio Negro, no Paraná, em 1934. De lá seguiu para Rodeio, Santa Catarina.
Em seguida, transferiu-se para o seminário de Petrópolis, no
Rio de Janeiro, onde foi ordenado sacerdote em 1945.
Escolhido por seu superior para estudar teologia, embarcou
para a França, aportando na prestigiosa Sorbonne do pós-guerra.
Lá se dedicou também ao estudo de línguas e recebeu o título
de doutor, em 1952.
No mesmo ano voltou ao Brasil, lecionou em instituições
franciscanas e dedicou-se a escrever livros e artigos, tornando-se jornalista
profissional.
Trabalhou, então, como vigário nos subúrbios de Petrópolis,
onde foi à luta organizando a população das favelas locais.
Inspirou-se em ensinamentos tirados da infância: "O
povo é a família do padre (...). E o padre (...) não é fujão nem frouxo".
REGIME MILITAR
Nomeado bispo em 1966, por decisão pessoal do papa Paulo 6º,
a quem conhecera em Roma, voltou à terra natal para ser ordenado ao lado dos
colonos de Forquilhinha.
A seguir assumiu a função de bispo auxiliar de São Paulo,
por uma improvável escolha do cardeal Agnelo Rossi, alinhado à ala conservadora
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
Como bispo auxiliar da região norte da maior cidade
brasileira, começou a visitar os presos comuns no Carandiru e, por designação
do cardeal, foi ao presídio Tiradentes saber das condições de um grupo de
frades dominicanos encarcerados por motivos políticos, entre eles frei Betto e
frei Tito.
Constatou que foram torturados e encontrou Tito esvaindo-se
em sangue. Voltou ao cardeal e relatou o que viu. Para sua surpresa, como
relata em "Da Esperança à Utopia", ouviu de seu superior: "Muito
obrigado dom Paulo, (...) mas outros me garantem que não há tortura nas nossas
prisões". Ele nunca criticou publicamente dom Agnelo pela declaração.
Mas a partir desse batismo de sangue, assumiu em São Paulo a
vanguarda da luta pelos direitos humanos e pela defesa dos presos políticos.
Em outubro de 1970, foi designado titular do arcebispado em
substituição ao cardeal Rossi, que foi servir em Roma. Outra vez, uma escolha
pessoal de Paulo 6º, o papa que dom Paulo mais admirou e de quem se aproximara
em passagens de estudos pelo Vaticano.
À frente da Igreja de São Paulo, aplicou ensinamentos do
Concílio Vaticano 2º e transformou em ações concretas a opção preferencial
pelos pobres afirmada na Conferência Episcopal de Medellín, Colômbia, em 1968.
Começou a gestão vendendo o imponente palácio episcopal. Com
o dinheiro, comprou terrenos em bairros populares para construir centros comunitários
e instalações religiosas modestas, dando início à "Operação
Periferia".
Jogou os costumes principescos de seus antecessores pela
janela. Surpreendeu os religiosos que o serviram na Cúria paulista ao sentar-se
com eles às refeições.
Inspirou-se no que ouviu do pai ao contar-lhe que queria ser
padre: [você] "sempre será filho de colono e de seu povo".
Agindo como tal, investiu em trabalho comunitário, foi às
periferias, voltou-se para os migrantes e espalhou Comunidades Eclesiais de
Base pelos quatro cantos da cidade.
Ao mesmo tempo, revitalizou o estudo doutrinário entre os
religiosos e fez da evangelização um objetivo constante em todas as ações da
Arquidiocese, até nos presídios.
São dessa época seus grandes confrontos com os generais da
ditadura. Enfrentou os sucessivos comandantes do 2º Exército (hoje Exército do
Sudeste), sediado em São Paulo, e até presidentes da República.
Num encontro com o presidente Emílio Garrastazu Médici, a
conversa encerrou-se aos berros. Foi Médici quem decretou, depois, em 1973, a
cassação da rádio Nove de Julho, tradicional emissora da igreja em São Paulo.
Do mesmo modo, desafiou as autoridades civis de São Paulo,
de governadores afinados com a ditadura a secretários de Segurança e delegados
de polícia, tentando preservar a vida e assegurar os direitos fundamentais dos
presos políticos.
Com base no exemplo de Paulo 6º no Vaticano, reproduziu na
Arquidiocese de São Paulo a Comissão Justiça e Paz, em 1972, indo buscar o
jurista Dalmo de Abreu Dallari para ser seu primeiro presidente. Paulo 6º
declaradamente o admirava e, no consistório de 1973, elevou-o a cardeal.
Sem perder o foco na ação propriamente religiosa de que
pouco se fala, usou a nova insígnia papal para se contrapor aos desmandos da
repressão política. Apoiou decididamente o procurador de Justiça Hélio Bicudo
em sua luta contra o Esquadrão da Morte -quadrilha policial de assassinos de
que fazia parte um notório torturador e ícone da ditadura, o delegado Sergio
Paranhos Fleury.
Foi a Comissão Justiça e Paz que publicou nos anos 70 o
livro de Bicudo sobre o Esquadrão, recusado por editoras comerciais.
No período sofreu ameaças e calúnias —como denúncias
anônimas tachando-o de homossexual. Sobre isso jamais se pronunciou,
demonstrando absoluto desprezo por seus detratores.
Mas admitiu ter sido informado de que o acidente de
automóvel que sofreu no Rio de Janeiro fora na verdade um atentado à sua vida.
Sobreviveu e ainda bateu muito na ditadura -por exemplo,
patrocinando a publicação "Brasil: Nunca Mais", sobre os mortos e
desaparecidos na ditadura militar. Apanhou também.
Um dos animadores de suas organizações de base, o operário
Santo Dias, presidente da Pastoral Operária, foi assassinado pela polícia com
um tiro nas costas durante uma manifestação popular.
O nome do operário -"cuja sorte foi a mesma de Jesus
Cristo pregado na cruz", nas palavras de dom Paulo- tornou-se mais um
símbolo da luta do cardeal com a criação, anos mais tarde, do Centro Santo Dias
de Defesa dos Direitos Humanos, hoje internacionalmente conhecido.
Na prisão, dom Paulo foi ainda visitar —e procurar proteger
sob o manto cardinalício- sindicalistas e estudantes.
No episódio Herzog, sua figura se agigantou. O regime
militar fez de tudo para desqualificá-lo e ensaiou até manobras diplomáticas
junto ao Vaticano por seu afastamento da Arquidiocese de São Paulo.
Foram esforços vãos.
JOÃO PAULO 2º
Surpreendentemente, sofreu seu maior revés no período da
restauração democrática do país. Numa iniciativa cujas motivações mais
profundas são até hoje mal explicadas, o papa João Paulo 2º fracionou a
arquidiocese em seções menores e, por consequência, com menos poderes.
Antes que o fato fosse consumado, o cardeal se queixou
pessoalmente ao papa, que negou ter dado a ordem. Porém, como dom Paulo deixa
claro em suas memórias, nada dessa magnitude acontece sem autorização expressa
do pontífice.
Também na campanha do Vaticano contra a Teologia da
Libertação, arquitetada pelo então cardeal Joseph Ratzinger (depois papa Bento
16), João Paulo 2º agiu do mesmo modo.
Disse a dom Paulo que não era contra a doutrina, mas deixou
a Cúria Romana mandar um visitador para colher elementos processuais com vistas
a bombardear a prática da Teologia da Libertação em São Paulo.
Depois dessas contrariedades, o cardeal se afastou, em 1998,
por limite de idade, do comando da Arquidiocese de São Paulo, levando o título
de arcebispo emérito.
Passou os últimos anos de sua vida entre orações, leituras e
assistência aos idosos, recebendo ainda inúmeras homenagens, entre as quais a
da presidente Dilma Roussef que, em 18 de maio de 2012, foi visitá-lo na
Congregação Franciscana Fraternidade Nossa Senhora dos Anjos, em Taboão da
Serra (SP).
Na ocasião, Dilma contou a ele as providências do governo
para criar a Comissão da Verdade, instalada poucos dias antes. Já bastante
combalido, não fez comentários públicos a respeito.
A rigor, seu derradeiro gesto de caráter político -embora de
fundo religioso- ocorreu pouco antes de deixar o comando da Arquidiocese, em
1998, quando reagiu de forma dura às atitudes da Cúria Romana, levando João
Paulo 2º a admitir, em uma difícil conversa pessoal com o cardeal brasileiro,
que era, sim, o responsável final por aquelas decisões polêmicas.
"A Cúria sou eu", disse o papa, provocado por dom
Paulo. Mais uma vez, então diante da autoridade máxima da Igreja Católica
Romana, o frade mostrou que não era frouxo.
PEDRO DEL PICCHIA é jornalista e escritor. Foi
correspondente da Folha em Roma de 1978 a 1981.
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