segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O BÊBADO E O JORNALISMO

“O modo como enxergamos o mundo seria muito diferente se todos os nossos julgamentos pudessem ser isolados da expectativa e baseados apenas em informações relevantes”, ou ainda: “É fácil seremos vítimas das expectativas, e é também fácil explorá-las diante dos outros.” Essas são reflexões trazidas pelo físico estadunidense Leonard Mlodinow, no livro O andar do bêbado, publicado em 2009. Em palavras gerais, a obra trata de como fatores aleatórios influenciam no resultado de sistemas complexos, como na nossa vida, por exemplo. Especificamente, Mlodinow traz importantes lições para o jornalismo, para tal apresenta resultados que desmistificam os salvadores da pátria, as celebridades, os gurus do marketing, enfim, contrapõe o mundo da aparência ao da essência.
O 2016 foi farto de problemas complexos para os quais se vendeu soluções fáceis e rápidas. Por causa da manifestação de insatisfação da população com a corrupção e com a crise política e econômica, a saída foi o impeachment e a instalação de um governante salvador da pátria. E a mídia teve um papel decisivo nesse processo porque coletou todas as evidências favoráveis à ideia e, o pior, passou até interpretar indícios ambíguos de modo a favorecer e respaldar a ideia como solução para a crise.
Por outro lado, não mostrou as contra razões desse processo, mas que ao longo do ano foram se impondo naturalmente. Portanto, ignorou-se a premissa básica que diz: para uma ideia ter o mínimo de consistência, é necessário equilibrar os prós e os contras, contudo, o que se fez foi seguir apenas o padrão de comportamento observado pelo filósofo Francis Bacon, em 1620. Para Bacon, “a compreensão humana, após ter adotado uma opinião, coleciona quaisquer instâncias que a confirmem, e ainda que as instâncias contrárias possam ser muito mais numerosas e influentes, ela não as percebe, ou então as rejeita, de modo que sua opinião permaneça inabalada”.
Esse comportamento é chamando pelos psicólogos de viés da confirmação, prática muito presente também nas redes sociais, em que se seguem pessoas com as mesmas opiniões e preferências, estratagema cada vez mais reforçado graças ao uso dos algoritmos para juntar um público homogêneo no espaço online que, em última instância, visa o mercado e o interesse comercial de grupos empresariais. Segundo tal lógica, quando estamos diante de uma ilusão – ou em qualquer momento em que tenhamos uma nova ideia -, em vez de tentarmos provar que nossas ideias estão erradas, geralmente, tentamos provar que estão corretas. Inclusive, a tendência de confirmação de nossas expectativas não é nova nem só coisa da internet. Conforme Mlodinow, ela pode ocorrer em várias circunstâncias, como exemplo, quando um empregador entrevista um candidato a um emprego, sua propensão é formar uma rápida primeira impressão do sujeito e passar o resto da entrevista buscando informações que a corroborem.
Mundo da aparência
Quem se serve bem do mundo das aparências e das falsas expectativas é o marketing. Para ilustrar sua obra sobre o mito das falsas verdades, Mlodinow apresenta diversas pesquisas e análises realizadas no campo das marcas. E num estudo feito em 2008, um grupo de voluntários deu nota melhor a uma garrafa com etiqueta de US$90 que a outra com etiqueta de US$10, embora os sorrateiros pesquisadores tivessem enchido as duas com o mesmo vinho. Outro teste foi feito com vodca. De acordo com a descrição da bebida feita pelo governo da Rússia, ela é neutra e não apresenta aroma, sabor e cor. Mas o estudo com 21 rótulos diferentes da bebida mostrou resultados curiosos: no primeiro teste, os rótulos e os preços ficaram à mostra, quando os envolvidos atribuíram qualidades melhores à medida que o valor era maior e a marca mais conhecida. Num segundo teste, às cegas, com as mesmas pessoas, a vodca mais barata recebeu melhor cotação.
Para lembrar que a força das marcas não se restringe a produtos específicos, evidentemente, basta citar a eleição do prefeito de São Paulo, João Doria Jr.; e do presidente dos EUA, Donald Trump. O que os dois têm em comum: são empresários e ex-apresentadores de reality show; portanto, se beneficiaram fortemente na política devido à construção dos seus nomes pelo marketing. E o que o jornalismo fez para mostrar a realidade por trás dessas aparências? Pelo menos aqui no Brasil, praticamente nada.
Já o autor do O andar do bêbado busca uma compreensão mais ampla para o exposto. Ele avalia que a visão determinística do mercado dá conta que o sucesso da pessoa e do produto é determinado pelos valores intrínsecos, o que, em geral, é uma falácia, ressalta ele. Ou seja, na sociedade capitalista se diz que os valores e os princípios são essenciais, mas se projeta o grau da celebridade e a quantidade de dinheiro como sinônimo de sucesso. Esse tipo de sociedade também se apressa em transformar os ricos em heróis e os pobres em pondes expiatórios.
A origem disso vem da nossa tendência a confiar demais nas previsões excessivamente precisas das pessoas – comentaristas, especialistas de finanças, gurus do marketing – cujo histórico, supostamente, demonstra conhecimento dos assuntos. Mas se visto com mais cuidado, como fazem os historiadores, apenas se gera uma aparência de inevitabilidade, usando a estratégia de citar fontes abalizadas pelo mercado e de trazer para o primeiro plano as forças vencedoras e jogando para o segundo as que foram engolidas pelas primeiras.
Mundo da essência
O bom jornalismo que procura trazer à tona a essência e a relevância dos acontecimentos, infelizmente, está em falta nos últimos tempos. O que se tem visto é a espetacularização dos fatos, a criação de heróis e salvadores da pátria, publicitação de falsas polêmicas. Tudo isso se materializou em 2016, quando acompanhamos a cobertura da tragédia com o time da Chapecoense, a sobreposição de determinados juízes da Lava Jato a suas próprias instituições ou a dicotomia entre o Congresso Nacional e o STF.
Esse tipo de tratamento dos fatos ajuda pouco a cumprir uma das essências do jornalismo, levar informações às pessoas para terem sua independência e se autogovernarem, por exemplo. Ainda mais agora, momento em que a mídia tradicional – jornal, rádio, televisão – sofre com as superficialidades, boataria e polarizações das informações publicadas nas redes sociais. Para fazer frente a tal realidade, dever-se-ia ter como uma espécie de missão a verificação e a relevância dos assuntos, antes de lançá-los à agenda pública. Mas o que tem acontecido é o viés da confirmação de algumas verdades, assim ampliando as falsas verdades e a tão conhecida polarização dos temas nas plataformas online.
Acompanhar e endossar opiniões diante de movimentos de ocasião, conforme sopra o vento, não contribui em nada a fortalecer o jornalismo e preservar seu principal ativo: a credibilidade. Por isso, não importa quanto a forma de fazer jornalismo e a distribuição da informação tenham mudado com a nova tecnologia, a essência tem permanecida a mesma: desmistificar as falsas verdade e fornecer aos cidadãos informações seguras para tomarem suas decisões. Adotando esta postura, conforme Bill Kovach e Tom Rosenstiel escreveram no livro “Os Elementos do Jornalismo: o que os jornalistas devem saber e o público deve exigir”, pode até não se alcançar a verdade, mas o público sabe reconhecer se se chegou perto – quando fontes autorizadas, pesquisa exaustiva e métodos transparentes foram aplicados no processo e de modo honesto.
Em 2017, para não continuar neste movimento aleatório, culpando a crise econômica e as redes sociais e se chocando contra todos os obstáculos que encontra pelo caminho sem saber aonde irá chegar, como o andar do bêbado, o jornalismo precisa deixar de lado o papel do marketing e se dedicar a desvendar os temas que de fato influenciam e ajudam a construir nossa cidadania. Só assim a notícia será relevante e servirá como base nas decisões da vida.
Elstor Hanzen é jornalista e especialista em convergência de mídias
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