Roberto Romano, O Estado de S.Paulo
O Supremo Tribunal é conhecido como Corte política. Não raro
se excede na faina de agradar ao Executivo e ao Legislativo. Em sua história os
brasileiros encontram sentenças que envergonhariam qualquer toga do planeta.
A Constituição de 1934 proíbe tribunais de exceção no
capítulo 2, 25: “não haverá foro privilegiado, nem tribunais de exceção”.
Instaurada o Tribunal de Segurança Nacional, o deputado João Mangabeira
apresenta recurso ao Supremo. Por voto unânime os juízes declaram o invento
tirânico “em perfeito acordo com a Constituição da República”. Um atalho na
Carta permite a hermenêutica liberticida: “admitem-se, porém, Juízos especiais
em razão da natureza das causas”. E a bênção dos magistrados é concedida sem data
venia. O referido tribunal persegue 1.420 pessoas: 533 no Distrito Federal, 222
do Rio Grande do Norte, 165 em São Paulo, 95 em Pernambuco, 85 da Bahia. Entre
os “julgados”, Armando Sales, José Antônio Flores da Cunha, João Mangabeira,
Otávio Mangabeira, Luís Carlos Prestes, defendido pelo grande Sobral Pinto. No
caso de João Mangabeira ocorre façanha incomum na história jurídica
internacional: empatada a decisão, o presidente Barros Barreto decide contra o
réu. O Supremo Tribunal Militar corrige em parte o escândalo e concede habeas
corpus ao parlamentar.
Depois vêm as manobras em prol do parlamentarismo, com a
demissão de Jânio Quadros. O STF se cala, apesar do notório golpe aplicado por
militares. Em 1964, o mesmo silêncio tíbio quando Hermes Lima e Evandro Lins e
Silva são expulsos da Excelsa Corte pelo governo de fato. Procura em vão quem
busque nos anais daquele colégio uma nota mais dura contra o AI-5, que suspende
o habeas corpus em casos de crime político e contra a ordem econômica, a
segurança nacional, a economia popular. Tais crimes são tipificados com
pressuroso auxílio de quem redige uma Constituição como a Polaca, o notório
Francisco Campos. Nada relevante é dito pelo Supremo contra a censura prévia em
jornais, revistas, livros, peças de teatro e músicas.
E seguimos a trajetória pouco sublime do Supremo. Por
exemplo, no apagão do período FHC. Questionada a constitucionalidade da multa
(os usuários não eram responsáveis pela imprudência governamental, que não
providenciou melhorias na rede), os juízes do STF definem que, sem penalidades
pecuniárias, os cidadãos deixam de colaborar. Logo… Na reforma da Previdência
sob Luiz Inácio da Silva, Joaquim Barbosa, o herói da futura Ação 470, decreta
em seu voto que “não existem direitos adquiridos, caso contrário ainda
estaríamos em regime de escravidão”. Nenhuma data venia é apresentada por seus
pares contra o sofisma, de enrubescer estudantes ainda no primeiro ano
acadêmico.
O que acontece na tarde de 7 de dezembro de 2016 ressuscita
o velho serviçal dos outros dois Poderes, com resultado ainda pior para os
togados. Sob o ultimato de Renan Calheiros e do governo – chantagem solta, pois
sem a vitória de Renan surge a ameaça de não se votarem cortes orçamentários –
o Supremo se coloca como trampolim para ações contrárias à cidadania que lhe
paga e a quem deve servir.
Antes de continuar, uma reflexão. Illibatus, a, um, no latim
maltratado pelos membros do STF, tem o sentido de algo ou alguém íntegro,
inteiro, completo, ao qual nada falta, não enternecido pela perversão ética.
Como o candidus, do qual se origina o atual “candidato”, o vocábulo indica a
propriedade de não ser conspurcado, de seguir um parâmetro virtuoso. Illibatus
designa um ser sem travestimentos, enfeites, dissimulação. Seu antônimo é o
termo improbus, aplicado a quem “comete uma falta contra a fides, sendo o
equivalente de iniustus. A improbitas é a ruptura da fides, é o defeito de quem
não honra promessas e corresponde ao francês malhonnêteté”. (J. Hellegouarc’h:
Le Vocabulaire Latin des Relations et des Partis Politiques sous la
République).
No Brasil, todo cargo público exige do candidato a “ilibada
reputação”. Esta lhe concede a efetividade plena do múnus encerrado no ofício.
Ninguém pode exercer uma função em fatias, pois tal fato seria improbidade
ética e política. Como, então, os juízes do STF guardam Renan Calheiros no
cargo de presidente do Senado, mas lhe retiram o direito e o dever de
substituir o chefe do Estado? Ocorre aí improbidade de alguém. Ao ser empossado
como senador, aquela pessoa promete cumprir fielmente tudo o que seu cargo
exige. Como não pode cumprir tal promessa, existe improbitas de sua parte. E
tal coisa é autorizada, ou melhor, sacralizada pelo guardião da Carta Magna?
Outro problema: Calheiros não pode substituir o chefe do
Executivo porque é réu e, portanto, sua reputação não é inteira, é quebrada por
algo muito grave. Mas numa República democrática o soberano é o povo. Renan não
pode assumir a Presidência, mas pode legislar para os cidadãos, obrigando-os a
cumprir normas das quais ele mesmo é acusado oficialmente de se abster? Para os
juízes do STF, quem é mesmo o povo? A presidente Cármen Lúcia, num rasgo agora
provado como demagógico, proclama ao ser empossada algo assim como “Sua
Excelência o Povo”. Triste excelência, obrigada a seguir leis definidas por
quem a elas não obedece! O competente e sério jornalista José Nêumanne Pinto
define a decisão do fatídico dia 7/12 como “cusparada no povão”. Ele é muito
gentil com os integrantes da Suprema Corte.
No espetáculo de subserviência o STF faz mais: retoma sua
amarga história de instrumentum regni. Esquecem os magistrados: quando a
autoridade é perdida, um Poder deve sorver até a última gota da abjeção. A
Câmara dos Deputado prepara medidas contra as sentenças do STF. A continuar o
sumiço de sua própria auctoritas, aquela Corte logo terá membros seus nas
penitenciárias. Por ousar a condenação de larápios do dinheiro público.
O realismo político à custa da cidadania sempre termina em
tragédia. Ou comédia.
*Autor de 'Razão de Estado e Outros Estados da
Razão',Editora Perspectiva
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