Artigo de Fernando Gabeira
Por mais que se fale em ano novo, em vida nova, no fundo de
cada um de nós está a certeza de que certas complicações atravessam o réveillon
e prosseguem em nossas vidas. Na última semana de 2016, a Polícia Federal fez
uma busca nas gráficas que serviram à chapa Dilma-Temer. Isso serviu para nos
lembrar que o tema voltará em 2017 e com a dose de realismo fantástico que
tempera nosso noticiário.
Temer vai dizer que as contas são separadas. Seus
adversários dirão que é uma só, indivisível. Se forem separadas, o foguete
explode apenas no colo de Dilma. Se forem uma só, a chapa vai para os ares e
teríamos eleições indiretas. As próprias gráficas misteriosas já têm algo de
fantástico. O dono de uma delas é um homem chamado Beckembauer Rivelino.
Certamente o pai queria lembrar dois grandes craques. Um joga no ataque, outro
na defesa. No próprio nome do atacante e defensor se equilibram, o menino já vem
com salvaguardas para não jogar muito solto. Essa discussão sobre a chapa
Dilma-Temer vai depender muito da política. A tendência é de que defensores do
governo afirmem a tese da separação e críticos a da unidade indissolúvel.
Dilma e Temer unidos para sempre? Ele chegou a escrever uma
carta que parecia um mimimi do tipo “você não se importa comigo”. Queria com
isso revelar já naquela época que, apesar das aparências, não rolava nada nas
relações políticas entre os dois. A temporada de 2017 promete no TSE. Mas nada
parecido com a cena no STF que deve homologar e dar transparência à delação da
Odebrecht. O que os americanos revelaram foi o bastante para sacudir a política
no continente. As redes sociais foram inundadas com protestos e críticas em
todos os nove países onde houve corrupção na América Latina. Estamos no
epicentro de um escândalo mundial. No entanto, os dados divulgados nos EUA
ainda são incompletos. Os políticos brasileiros foram chamados de brazilian
officials e numerados de um 1 a 9. Quando esses números ganharem nome e cara, e
isso só é possível com a transparência da delação, talvez se possa tomar
consciência também da amplitude da aventura internacional do brazilian oficial
número 1 e o esquema da Odebrecht. Ao divulgarem o que a Odebrecht pagou em
propina e o quanto lucrou, os americanos lançaram um dado objetivo que foi, ao
mesmo tempo, a semente da crítica, em toda a parte, e a base para a pressão
sobre os governantes. Nesse particular, autoridades suíças, aliás, enfatizaram
esse ângulo: para cada dólar investido em suborno, a Odebrecht conseguia quatro
de lucro.
As investigações foram realizadas no Brasil. O país tem se
mostrado aberto para compartilhar os dados com outros governos. No entanto,
ainda assim ficam alguns ressentimentos no ar. Cedo ou tarde, o país terá de
escrever na língua nativa a história dessa trama que envolveu países da América
Latina e da África. Nunca nossa presença externa foi tão abrangente e
lamentável. Embora o escândalo continental tenha tido pouca repercussão aqui,
os diplomatas brasileiros, certamente, terão sensibilidade para o furacão.
Ainda no campo da diplomacia, os documentos da política externa sobre a
aventura também devem ser revelados no processo de transparência que virá. Não
há razão para esconder, pois o essencial a polícia já conhece e estará descrito
nas delações premiadas. A transparência agora não significa apenas dar nome aos
culpados. Ela tem de estar a altura do grande fato histórico em nossa política
externa e documentá-lo com precisão.
O ano de 2016 foi duro. E 2017 ainda nos espera com grandes
tensões, mas pelo menos a promessa de que as coisas serão esclarecidas
finalmente. Venha o que vier, terá pelo menos o condão de nos trazer a
realidade, esclarecer tudo que ainda se ignora. Será um grande momento de
verdade pelo qual temos de passar no caminho da reconstrução.
A Odebrecht e o official número 1 bateram recordes de
cifras, ganharam o campeonato mundial de corrupção. É uma ilusão supor que a
História vá ignorar essa grande feito. Os americanos o acharam tão importante
que se apressaram a divulgá-lo sinteticamente. Certos detalhes não interessam a
eles, como o papel do BNDES em toda a trama, as manobras diplomáticas, os
interlocutores, os discursos. No Brasil a história completa precisa vir à tona.
Ela representa um capítulo independente, foi objeto de investigações em
Curitiba e Brasília e está presente em alguns dos 800 depoimentos da Odebrecht.
Num momento em que todos os noves países latinos atingidos
começam também a investigar, dados novos podem surgir. E estará mais completa
ainda a narrativa desse episódio inédito no Brasil: a multinacional da propina
combinando empresa, diplomacia presidencial e o BNDES.
Como disse, um filme à parte.
Feliz Ano Novo.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 01/01/2017
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