Artigo de Fernando Gabeira
Manaus — Foi uma semana macabra. Não tenho notícia de tanta
violência num espaço fechado. O caminho dos policiais que entraram no presídio
era marcado por pedaços de corpos, colocados como aviso. Na porta de um dos
pavilhões, uma barricada de pernas, braços e cabeças. Vim para Manaus mais uma
vez para aprender alguma coisa, mesmo que me traga tristeza pelo que ouviria e
pelo baque na imagem externa do Brasil.
Recentemente, escrevi um artigo sobre o nosso sistema
penitenciário, que me parece uma bomba-relógio. Lamentava um pouco o
desinteresse com que o tema sempre era recebido, mas alertava que infelizmente
os presídios falam por si próprios. No artigo, chamava a atenção para o fato de
que, apesar da necessária discussão sobre as condições da cadeia, havia um fato
mais recente que era o poder das organizações criminosas no interior dos
presídios. O que vi agora foi uma demonstração disso. Em vez de serem neutralizadas,
as organizações criminosas de uma certa forma são legitimadas dentro das
cadeias.
Aqui no Amazonas, a legitimação passou por várias etapas. A
Família do Norte, que hoje esquarteja e faz coreografia com pedaços humanos, na
eleição de 2014 foi contatada por um membro do governo para discutir apoio. O
áudio vazou, o alto funcionário da segurança caiu. Quando a Polícia Federal fez
uma grande e bem-sucedida campanha contra a organização, surgiram nomes de uma
desembargadora e de um juiz que seriam aliados dos criminosos.
Precisei ouvir a empresa terceirizada que administra o
presídio. Não a encontrei além dos humildes funcionários uniformizados. Ela se
chama Umanizzare, recebe cerca de R$ 4,6 mil por preso, quase três vezes o
custo no Sudeste. A empresa figura também como doadora de campanha política.
Os fatores locais, no entanto, não obscurecem a crise que o
sistema vive em todo o país. Aqui em Manaus, uma organização do Norte quer
esmagar o que considera invasores do Sul. Em Pedrinhas, no Maranhão, o conflito
é de grupos da capital contra os do interior. E os conflitos, às vezes,
repercutem nas ruas, na forma de sabotagem e queima de ônibus.
Além dos necessários investimentos que resolvam problemas
elementares como a superlotação e a decadência das instalações, é preciso
pensar no novo problema. Como recuperar o controle dos presídios e estabelecer
a lei lá dentro? Sempre vi nesta questão uma das chaves para desarmar a
bomba-relógio. Tenho insistido que o instrumento básico em qualquer projeto de
controle é desenvolver o trabalho de inteligência nos presídios. O esquecimento
da sociedade brasileira em relação ao problema é compreensível porque muitos
acham que, uma vez presos, os criminosos deixam de ser um problema.
Na Inglaterra houve experiência de trabalho de inteligência
que reduziu o crime dentro da cadeia. Aqui no Brasil, na década de 1990,
cheguei a formular uma proposta para reduzir motins. Ela consistia apenas numa
central de análise que receberia informes diários da situação do presídio. Muitos
motins são previsíveis e evitáveis. Infelizmente não foi o caso do Complexo
Penitenciário Anísio Jobim. Havia uma previsão de motim, ainda assim ela se
mostrou inevitável. As medidas de segurança foram afrouxadas na passagem de
ano: as mulheres dos presos poderiam pernoitar e bastava apenas uma carteira de
identidade para entrar. O governo federal nem sequer foi informado da situação
de risco no presídio. Num esquema conectado isso seria impossível.
Não adianta trabalho de inteligência quando não se extraem
os dados. Mais cabeças trabalhando com eles aumentam a chance de êxito. Ao
encerrar meu programa de TV aqui em Manaus, escolhi como fundo a Cadeia
Pública, um prédio de 1805 que estava destinado a ser um museu. Para ela foram
trazidos os prisioneiros que precisavam ser retirados do presídio Anísio Jobim.
Foi uma solução improvisada que dramatiza a decadência do sistema no Brasil.
Voltar a 1805 é um alívio. Nas circunstâncias, significa um progresso. Em que
época estavam aqueles corpos esquartejados e amontoados numa caçamba? Um
esforço nacional para reconstruir o sistema penitenciário, por mais que existam
divergências pontuais, é uma das mais importantes frentes contra a barbárie.
Há quem ache que os bandidos devam morrer mesmo e que esse
caos provoca uma espécie de limpeza, através dos massacres. Falei com uma
estudante universitária diante do Instituto Médico Legal. Ela procurava o
irmão. Desejei que não estivesse lá, entre os mortos. Ela respondeu: eu
preferia que estivesse. Os que falam apenas por opinião deveriam examinar o
quadro no conjunto: alegram-se com 56 mortos e se esquecem dos 180 que fugiam
no mesmo momento.
Essas bombas quando estouram atingem a todos, não importa o
que você pense. Por isso é uma tarefa nacional renovar o sistema penitenciário.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 08/01/2017
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