O escritor Vargas Llosa disse que a Odebrecht merece um
monumento por ter revelado o mecanismo de corrupção no continente.
Naturalmente, referia-se ao modo de operar da empresa. A Odebrecht, na verdade,
revelou o mecanismo da corrupção, apesar dela.
A primeira etapa foi de negação. Marcelo Odebrecht
recusava-se a colaborar e orientava uma agressiva tática de defesa.
Funcionários da Odebrecht foram enviados ao exterior para desfazer pistas,
sobretudo na Suíça.
De fato, o mecanismo da Odebrecht é monumental, incluindo o
uso de um banco, de cervejarias e inúmeras outras empresas que cobriam sua
identidade. Mas a empreiteira só decidiu mesmo revelar toda a trama, até a
internacional, quando foi descoberto o seu setor de operações estruturadas, que
articulava esse imenso e sofisticado laranjal.
O mérito real da revelação do mecanismo que unificou quase
todos os governos do continente na mesma teia de corrupção é da Operação Lava
Jato. Graças ao trabalho e à competência da equipe de investigadores, todos os
sistemas políticos ligados à Odebrecht foram sacudidos e, em algum nível, terão
de se renovar.
A Lava Jato tornou-se uma grande ajuda à imagem do Brasil.
Em muitos países onde se debate o tema, é citada como o exemplo de uma
investigação bem-sucedida.
Há outros ângulos desse esquema de corrupção que atingem a
imagem do País. No Peru, por exemplo, foram bloqueados R$ 191 milhões de oito
empresas brasileiras ligadas à Lava Jato.
Empresas brasileiras, assim no plural, aparecem nos títulos
das notícias. O problema é que o Brasil tem mais de 400 empresas operando no
exterior. É importante que não sejam chamuscadas, assim como é importante uma
reflexão sobre como evitar que o próprio brasileiro não seja visto com
suspeição.
O melhor para isso, creio, é avançar com a Lava Jato. O
passo mais importante é levantar o sigilo dos 77 depoimentos de dirigentes da
Odebrecht. Afinal, o que eles realmente revelam sobre o gigantesco esquema de
corrupção?
É sempre possível argumentar que o sigilo favorece as
investigações. Mas minha tese é que, se há um tsunami pela frente, é melhor
passar logo por ele.
Espero que o sigilo prolongado não seja apenas uma visão
paternalista de evitar que a crise política se aprofunde, de supor que ainda o
País não está preparado.
Acrescento outro argumento: um pequeno grupo que conheça
esses dados tem sempre um grande poder nas mãos. É razoável que queira
torná-los públicos para evitar interpretações maliciosas sobre o prolongado
silêncio.
No jornalismo costumávamos dizer que notícia é como
baioneta, sentou em cima, ela espeta. Sentar em cima das delações da Odebrecht,
de um fato histórico dessa dimensão continental, também pode ser dolorido.
Todas as delações com importância secundária já vieram à
tona. A sensação que tenho é de estar num restaurante lento onde o garçons, de
vez em quando, trazem algo para nos distrair, mas o prato principal mesmo
continua no forno.
Pode ser que exista de fato uma preocupação com o processo
de retomada econômica e os duros passos da jornada para recolocar o País no
eixo – na verdade, uma escolha que significa apertar agora para não submergir
adiante. Embora muitos contestem, acredito que o avanço das investigações e a
recuperação econômica se entrelacem.
O governo tem uma diretriz de reformas necessárias e está a
caminho de realizá-las. Mas o próprio governo já balizou o cenário em caso de
ser atingido pela Lava Jato: quem virar réu perde o cargo. É uma norma
anunciada e se for levada a efeito, creio, será recebida com a naturalidade com
que se anula um gol de mão.
Supor que seja possível retardar o processo político – o
tsunami envolve todo o sistema partidário – para não deter o econômico é optar
por uma tática ilusória. É mais do que hora de dar a palavra aos 77 delatores
da Odebrecht. Tenho vontade de começar a bater o garfo no prato vazio.
A necessidade de saber não é para contabilizar quem recebeu
quanto, divertir-me com apelidos folclóricos. É a necessidade de pensar um
pouco adiante, ter uma ideia de como é possível reconstruir um tecido político
dilacerado.
Admiro a energia de pessoas sentadas sobre o tsunami. Mas
estão sentadas também sobre o futuro do sistema político brasileiro, que
depende desses dados para esboçar um mapa do caminho.
Felizmente, uma revelação dessa amplitude provoca visões diferentes.
Com os dados na mesa, à disposição de todos, podem dar bons frutos.
Há um certo encanto em navegar na neblina, em improvisar ao
sabor dos eventos. Mas é preciso pensar um pouco adiante, antecipar alguns
passos mentalmente.
Não se trata de moldar o futuro, nem de fantasiar amanhãs
que cantam. Apenas deixar esta fase de insegurança: crise, desemprego,
violência crescente, distância abissal entre sistema político e sociedade.
Isso não pode dar certo. Submete a democracia brasileira a
uma tensão cada vez maior. E de uma qualidade diferente do movimento das
diretas. Ali estava em marcha a conquista de um direito: escolher o presidente
da República.
A realidade mostrou-nos que não basta escolher um presidente
pelo voto direto. É preciso construir um espaço para que se mova com decência.
A atmosfera política decaiu de tal maneira que bloqueou as
saídas. É necessária uma implosão para abrir horizontes. A delação não pode ser
mais uma obra inacabada que a Odebrecht contrata com o governo.
A composição polifônica precisa ser entregue ao público.
Depois do carnaval, vá lá. Mas, pelo menos, no início do ano novo alternativo,
que começa na Quarta-Feira de Cinzas.
Artigo publicado no Estadão em 24/02/2017
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