Artigo de Fernando Gabeira
Escândalos, como esse da carne, às vezes me alcançam no
interior, com precária conexão. Na falta de detalhes, começo pelas ideias
gerais. Por exemplo: como alimentar quase 10 bilhões de pessoas no meio do
século?
Já é uma tarefa muito complexa – no meu entender, impossível
– sem a produção de proteína animal. Há quem discorde disso e acredite que seria
possível substituí-la. Mesmo assim, sempre haveria gente comendo carne por
escolha.
Vegetarianos e carnívoros estão muito mais unidos do que se
pensa quando se trata de segurança alimentar.
Em 2006, na Califórnia houve uma grande contaminação do
espinafre produzida pela bactéria Escherichia coli (E.coli). Outras se
verificaram nos EUA e no mundo.
O sistema de produção e distribuição de alimentos conseguiu
ampliar a oferta, reduzir os preços e certamente livrou o planeta de muitas
fomes. Já se produzem 20% mais calorias do que as necessárias para alimentar
todo o mundo, apesar de um em cada sete habitantes do planeta ainda não ter o
que comer.
Essa conquista mundial não seria possível sem produção em
grande escala. E exatamente essa característica, que levou ao triunfo, é que
revela seu ponto fraco: a vulnerabilidade diante de certo tipo de contaminação.
Segundo o escritor Paul Roberts, autor do livro A Fome que
Virá, as mesmas cadeias de produção que constituem o supermercado mundial, e
são capazes de colocar frutas, hortaliças e carnes nos dois Hemisférios em
qualquer estação do ano, são um campo favorável para a expansão de patógenos
alimentares como E.coli e salmonela.
O problema revelado pela Operação Carne Fraca ainda é de uma
fase mais atrasada. É da corrupção de fiscais, algo que também já aconteceu em
muitos países do mundo.
O abalo na credibilidade do sistema brasileiro foi
inevitável, por vários fatores. O primeiro é que existe insegurança planetária
mesmo quando o controle é honesto. E os dados lançados pela Polícia Federal são
graves, por diversos aspectos.
As maiores empresas do Brasil estavam envolvidas. Elas podem
dizer que casos de contaminação da carne são isolados. Mas suas ligações com a
política são sistêmicas: a JBS, sobretudo, despeja milhões em campanhas
eleitorais.
O relatório da Polícia Federal foi atacado por suas
fragilidades: mistura da carne com papelão, algo que não parece viável, assim
como apontar o ácido ascórbico como fator cancerígeno. No entanto, no mesmo
relatório havia denúncias graves.
Uma delas é a presença de salmonela na carne. O governo
afirma que é um tipo de salmonela tolerado. Duvido que os consumidores aceitem
comer uma salmonela inofensiva – o que é até contestado cientificamente.
Houve outra denúncia, que passou em branco: o uso para
consumo humano de animais não abatidos, mas mortos em outras circunstâncias.
Isso é grave e, sobretudo depois da vaca louca, tem de ser fiscalizado com
rigor.
Para sair dessa maré negativa no mercado internacional serão
necessárias firmeza e transparência. Seria bom descartar teorias
conspiratórias. Em 2006 vivemos um momento em que havia realmente algo
inventado lá fora. Foi quando o Canadá insinuou que havia doença da vaca louca
no Brasil. Foi uma pequena batalha diplomática. Lembro-me de que, apesar de
vegetariano, participei de uma comissão que visitou a embaixada, foi ao
Itamaraty e se preparava até para defender a carne brasileira lá mesmo, no
próprio Canadá.
Esporadicamente, com uma ou outra notícia esparsa de febre
aftosa, novas pressões vieram sobre o Brasil. Eram pressões positivas. Pediam o
rastreamento do gado, um chip que contivesse as informações essenciais sobre o
animal que seria abatido.
Alguns reagiram com a teoria conspiratória, pensando que era
algo imposto por concorrentes para encarecer a carne brasileira. Uma década
depois, os chips de rastreamento são vendidos à vontade, até pela internet. E
fortalecem o sistema de controle.
Quando ficar claro, se ficar, que o problema é a escolha de
fiscais por partidos políticos e essa relação for detonada, creio que o caminho
para retomar a credibilidade se abre. De nada adianta impressionar os
compradores estrangeiros com nossa estrutura física. Se acharem que a fiscalização
depende de políticos, a desconfiança vai prevalecer.
De Luiz Eduardo a Petrolina, da Chapada dos Veadeiros ao
Vale do Gurgueia, o agronegócio brasileiro que tenho visto é uma história de
sucesso. Mas as empresas da carne que compram fiscais vão no sentido oposto de
quem se garante pela competência. Isso pode representar um lucro. Mas
estrategicamente conduz a um prejuízo sistêmico, a um abalo na exportação
nacional. Ao darem as mãos aos partidos políticos, os grandes produtores de
carne escolheram o caminho oposto ao da credibilidade.
É impressionante a cultura da dependência no Brasil. Mesmo
um setor que poderia passar sem o governo não só se financia com dinheiro
público, como destina uma parte para o processo eleitoral.
As delegações estrangeiras conhecem o equipamento instalado
no Brasil para a produção da carne. O grande problema é a confiança na
fiscalização local.
Dificilmente um país pode controlar todas as suas
exportações. Segundo Paul Roberts, dos 300 milhões de toneladas de alimentos
que os Estados Unidos importam, apenas 2% são fiscalizados. Não há fiscais para
tudo.
Mas não é apenas a carne brasileira que está em foco, e sim
o caráter dos funcionários do governo. Tanto no petróleo como na carne existem
equipamentos e competência técnica. No entanto, os dois setores foram abalados
pela corrupção política. Se Michel Temer quiser dar um na passo na recuperação
da credibilidade, deve levar os embaixadores a uma churrascaria e dizer, como
Rubem Braga diria: “This is not a pizza, this is a beef…”.
Artigo publicado no Estadão em 24/03/2017
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