domingo, 26 de março de 2017

DOENÇAS DA CARNE, DOENÇAS DA ALMA

Artigo de Fernando Gabeira
Quando menino, ouvia muito essa frase: ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil. Envelheci, nenhum dos dois acabou, nem a saúva nem o Brasil. Por isso, sou bastante contido ao falar da corrupção no país. Desde a década de 1990, limito-me a afirmar aos amigos que a corrupção iria inviabilizar nosso futuro.
Alguns discordavam. Suas teses enfatizavam a importância das conquistas sociais e afirmavam que, num contexto de grande progresso, a corrupção não seria mais do que uma nota de pé de página na História do Brasil contemporâneo.
Naquele momento, preocupava-me a degradação do sistema político: a perda de credibilidade iria nos jogar numa crise sem precedentes. O século virou. Com o assalto à Petrobras ficou evidente um outro lado da corrupção: seus danos à economia nacional. A crise econômica e o desemprego acabaram demonstrando que as conquistas sociais eram uma nota de pé de página numa gigantesca história de corrupção.
De um ponto de vista técnico, equipamentos e competência, não havia nada de errado na Petrobras. O sistema de produção de carnes no Brasil, referendado por inspeções internacionais, vive um momento dramático de credibilidade aqui e no exterior. A maior empresa do Brasil foi devastada pela corrupção. Agora, o comércio exterior do país sofre um golpe temporário. Para mim, a corrupção reaparece num novo cenário para demonstrar a tese do fim do século XX: se não for atacada de verdade, ela inviabiliza o país moral e economicamente.
As denúncias da PF talvez não tenham sido bem entendidas. Ou melhor, alguns críticos fixaram-se em alguns pontos e fugiram de outros que me parecem decisivos. Em primeiro lugar, mesmo sem papelão, mesmo acreditando que o ácido ascórbico não provoca o câncer, de um ponto de vista sanitário havia de algo muito grave ali. A presença de salmonela na carne deveria nos preocupar. Era uma carne para exportação. Se não fosse evitado esse lance, a credibilidade corria um risco muito maior.
Outro ponto preocupante é o uso de animais não abatidos, isto é, mortos em diferentes circunstâncias. Essa denúncia mencionada pelos federais coincide com depoimentos anônimos na internet de ex-funcionários de frigoríficos. A ingestão de animais mortos foi um grande tema quando se discutiu a doença da vaca louca na Europa.
Tudo isso pode ser esclarecido, mas não é o centro. O problema é o uso político das agências de fiscalização. Segundo os jornais, 19 entre 26 estão aparelhadas pelos partidos. Na primeira intervenção sobre o tema, escrevi, com outras palavras, que Temer ofereceu um churrasco para os embaixadores estrangeiros, e eles entenderam que era uma pizza.
A denúncia principal da PF era de corrupção. Isto preocupa mais os observadores do que a estrutura técnica da produção. Eles precisam confiar nas autoridades locais, porque não há condições de fiscalizar tudo que entra num país. O governo brasileiro não deu uma resposta para isso, exceto a demissão de alguns superintendentes. A resposta adequada é despolitizar todas as agências fiscalizadoras, garantindo eficiência e imparcialidade.
Por não ser capaz de demitir o ministro da Justiça, de questionar o da Agricultura, de ordenar a retirada de afilhados políticos, Temer trilhou o caminho mais difícil, escorando-se nos números para afirmar que o problema era pontual, mas omitindo o aspecto sistêmico: a presença de políticos em cargos onde não deveriam estar.
Um dos principais frigoríficos envolvidos, a JBS invade nossas telas garantindo sua competência técnica e a modernidade de seus processos. Quanto mais afirmam isso, quanto mais gente de uniforme branco imaculado nas telas, mais se escondem de seu verdadeiro problema: as relações incestuosas com os partidos políticos, especialmente com o PT. A JBS deve à Previdência, tomou empréstimos no BNDES, entrou no dinheiro do FGTS. Ela, na verdade, agiu no espaço público com mais desenvoltura do que uma estatal. E entupiu os partidos políticos, PT à frente, com mais de R$ 50 milhões na campanha eleitoral. E foi um caminho rude, passando o trator nos pequenos frigoríficos, impondo aos vendedores de gado condições draconianas.
Se vi bem, Temer usou um chapéu branco de garçom numa selfie de churrascaria. É uma ideia promissora. Se ao lado dele viessem todos de branco, os donos da JBS e BRF e os políticos que controlam as agências poderiam trazer na mão suculentos nacos de carne e dizer:
— Não existe nada de errado com ela. O problema somos nós.
Olhando para trás, acho que, apesar de fraca, a carne resistiu alguns anos. Antes dela desapareceram a decência na política, o respeito aos fatos, tudo engolfado pela corrupção: petróleo, hidrelétricas, nuclear, empreiteiras até joalherias, é a paisagem depois de batalha.
Já escondidos atrás do foro privilegiado, os políticos querem se esconder de novo atrás de listas fechadas, anular provas da delação da Odebrecht, enfim voltar aos velhos tempos.
Não vão acabar com o Brasil. As saúvas não acabaram.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 26/03/2017
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