Artigo de Fernando Gabeira
Quando menino, ouvia muito essa frase: ou o Brasil acaba com
a saúva ou a saúva acaba com o Brasil. Envelheci, nenhum dos dois acabou, nem a
saúva nem o Brasil. Por isso, sou bastante contido ao falar da corrupção no
país. Desde a década de 1990, limito-me a afirmar aos amigos que a corrupção
iria inviabilizar nosso futuro.
Alguns discordavam. Suas teses enfatizavam a importância das
conquistas sociais e afirmavam que, num contexto de grande progresso, a corrupção
não seria mais do que uma nota de pé de página na História do Brasil
contemporâneo.
Naquele momento, preocupava-me a degradação do sistema
político: a perda de credibilidade iria nos jogar numa crise sem precedentes. O
século virou. Com o assalto à Petrobras ficou evidente um outro lado da
corrupção: seus danos à economia nacional. A crise econômica e o desemprego
acabaram demonstrando que as conquistas sociais eram uma nota de pé de página
numa gigantesca história de corrupção.
De um ponto de vista técnico, equipamentos e competência,
não havia nada de errado na Petrobras. O sistema de produção de carnes no
Brasil, referendado por inspeções internacionais, vive um momento dramático de
credibilidade aqui e no exterior. A maior empresa do Brasil foi devastada pela
corrupção. Agora, o comércio exterior do país sofre um golpe temporário. Para
mim, a corrupção reaparece num novo cenário para demonstrar a tese do fim do
século XX: se não for atacada de verdade, ela inviabiliza o país moral e
economicamente.
As denúncias da PF talvez não tenham sido bem entendidas. Ou
melhor, alguns críticos fixaram-se em alguns pontos e fugiram de outros que me
parecem decisivos. Em primeiro lugar, mesmo sem papelão, mesmo acreditando que
o ácido ascórbico não provoca o câncer, de um ponto de vista sanitário havia de
algo muito grave ali. A presença de salmonela na carne deveria nos preocupar.
Era uma carne para exportação. Se não fosse evitado esse lance, a credibilidade
corria um risco muito maior.
Outro ponto preocupante é o uso de animais não abatidos,
isto é, mortos em diferentes circunstâncias. Essa denúncia mencionada pelos
federais coincide com depoimentos anônimos na internet de ex-funcionários de
frigoríficos. A ingestão de animais mortos foi um grande tema quando se discutiu
a doença da vaca louca na Europa.
Tudo isso pode ser esclarecido, mas não é o centro. O
problema é o uso político das agências de fiscalização. Segundo os jornais, 19
entre 26 estão aparelhadas pelos partidos. Na primeira intervenção sobre o
tema, escrevi, com outras palavras, que Temer ofereceu um churrasco para os
embaixadores estrangeiros, e eles entenderam que era uma pizza.
A denúncia principal da PF era de corrupção. Isto preocupa
mais os observadores do que a estrutura técnica da produção. Eles precisam
confiar nas autoridades locais, porque não há condições de fiscalizar tudo que
entra num país. O governo brasileiro não deu uma resposta para isso, exceto a
demissão de alguns superintendentes. A resposta adequada é despolitizar todas
as agências fiscalizadoras, garantindo eficiência e imparcialidade.
Por não ser capaz de demitir o ministro da Justiça, de
questionar o da Agricultura, de ordenar a retirada de afilhados políticos,
Temer trilhou o caminho mais difícil, escorando-se nos números para afirmar que
o problema era pontual, mas omitindo o aspecto sistêmico: a presença de
políticos em cargos onde não deveriam estar.
Um dos principais frigoríficos envolvidos, a JBS invade
nossas telas garantindo sua competência técnica e a modernidade de seus
processos. Quanto mais afirmam isso, quanto mais gente de uniforme branco
imaculado nas telas, mais se escondem de seu verdadeiro problema: as relações
incestuosas com os partidos políticos, especialmente com o PT. A JBS deve à
Previdência, tomou empréstimos no BNDES, entrou no dinheiro do FGTS. Ela, na
verdade, agiu no espaço público com mais desenvoltura do que uma estatal. E entupiu
os partidos políticos, PT à frente, com mais de R$ 50 milhões na campanha
eleitoral. E foi um caminho rude, passando o trator nos pequenos frigoríficos,
impondo aos vendedores de gado condições draconianas.
Se vi bem, Temer usou um chapéu branco de garçom numa selfie
de churrascaria. É uma ideia promissora. Se ao lado dele viessem todos de
branco, os donos da JBS e BRF e os políticos que controlam as agências poderiam
trazer na mão suculentos nacos de carne e dizer:
— Não existe nada de errado com ela. O problema somos nós.
Olhando para trás, acho que, apesar de fraca, a carne
resistiu alguns anos. Antes dela desapareceram a decência na política, o
respeito aos fatos, tudo engolfado pela corrupção: petróleo, hidrelétricas,
nuclear, empreiteiras até joalherias, é a paisagem depois de batalha.
Já escondidos atrás do foro privilegiado, os políticos
querem se esconder de novo atrás de listas fechadas, anular provas da delação
da Odebrecht, enfim voltar aos velhos tempos.
Não vão acabar com o Brasil. As saúvas não acabaram.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 26/03/2017
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