Da ISTOÉ
"É difícil pensar em alguém menos apropriado que a
bispa Sônia para escrever um livro intitulado ‘Vivendo de Bem com a
Vida’." A frase é de um ex-bispo que foi do alto escalão da Igreja
Renascer em Cristo por mais de uma década e sintetiza o momento da instituição
neopentecostal brasileira liderada pelo casal Sônia, 52 anos, e Estevam
Hernandes, 57. No ano em que comemora um quarto de século, a denominação, tida
como a grande promessa evangélica dos anos 1990, dá sinais claros de que está
em franca decadência. Com cisões internas, uma complicada crise sucessória, um
crescente número de lideranças migrando para outras denominações, templos
fechados por falta de pagamento de aluguel e um sem-número de indenizações a
serem pagas num futuro próximo, as perspectivas não são nada boas. “O futuro da
igreja está nas mãos de Deus”, disse a bispa em entrevista exclusiva à ISTOÉ (leia aqui).
O livro “Vivendo de Bem com a Vida” (Ed. Thomas Nelson), que
narra parte da trajetória desta que ainda é uma das figuras femininas de maior
peso do movimento neopentecostal brasileiro, será lançado oficialmente no
sábado 10, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Com tom professoral e
confessional, o título já vendeu as 17 mil cópias da primeira impressão e está
a caminho de esgotar as dez mil da segunda, uma raridade para o mercado
editorial brasileiro. Parte desse quinhão será oferecida para os fiéis nos
templos da Renascer a preços bem acima da média. “Quero cinco pagando R$ 300
por cada um destes livros até o final do culto”, anunciarão os bispos, como já
fazem com os CDs, DVDs e livros nos templos da instituição. Tudo para aumentar
a arrecadação do grupo. “A sede deles por dinheiro é absolutamente insaciável e
está destruindo a igreja”, afirma o ex-bispo.
Sede essa que não é mais condizente com a estrutura
encolhida que a igreja tem hoje. Em 2002, a Renascer em Cristo contava com
1.100 templos espalhados pelo Brasil e o mundo. Atualmente são pouco mais de
300. O líder que poderia imprimir agilidade à administração, o bispo Tid,
primogênito de Estevam e Sônia que sempre teve saúde frágil, está em coma
profundo há quase dois anos num leito de hospital. Da equipe de aproximadamente
100 bispos de primeiro time que a denominação tinha espalhada pelo Brasil até
2008, metade saiu para outras igrejas levando consigo pastores, diáconos e
presbíteros. Para o lugar deles, ascenderam profissionais com menos experiência,
o que, especula-se, pode ser um dos motivos da debandada de fiéis.
Quem acompanha a bispa hoje, porém, pode até acreditar que
ela viva de bem com a vida, como diz o título de seu livro. Com um salário que
gira em torno dos R$ 100 mil, ela continua com programas televisivos e de rádio
diários, se veste com as mais exclusivas grifes e está sempre adornada com
joias e relógios caros. Do apartamento triplex onde mora, em um bairro nobre na
zona centro-sul da capital paulistana, ela sai pela cidade para cumprir suas
obrigações de carro importado, blindado e escoltada por dois seguranças. Isso
quando não usa um helicóptero avaliado em R$ 2,5 milhões para visitar seus
sítios e haras no interior paulista. Mas que o observador não se engane. A
riqueza que ela ostenta hoje não tem a retaguarda do começo dos anos 2000,
quando a Renascer nadava de braçada no mar do crescente movimento evangélico
brasileiro. “Hoje os Hernandes sangram a igreja para dar sobrevida ao padrão de
vida nababesco que têm”, acusa um dissidente. Se nos anos 1990 a opulência do
casal servia de chamariz para os adeptos da teologia da prosperidade, que
celebra a riqueza material como uma dádiva proporcional ao fervor com que o
devoto professa sua fé, hoje ela é uma ameaça à sobrevivência da instituição.
Mas como uma neopentecostal de envergadura internacional,
que trouxe eventos gigantescos ao País, como a Marcha para Jesus, capaz de
arregimentar 3,5 milhões de pessoas na capital paulista num único dia, e criou
marcas de imenso sucesso como o Renascer Praise – o maior show de música gospel
do Brasil, com mais de 15 edições –, entrou numa espiral descendente e,
aparentemente, irreversível, de prestígio e credibilidade? Por que uma líder
tão carismática como Sônia Hernandes perdeu apelo tão rápido? Dois eventos,
próximos um do outro, desencadearam a derrocada da instituição. O primeiro
começou na madrugada do dia 14 de janeiro de 2007, uma terça-feira. A caminho
de Miami, nos Estados Unidos, Sônia, Estevam, dois filhos e três netos
embarcaram na primeira classe de um voo levando US$ 56.467 em dinheiro. Ao
pousar, tentaram passar pela alfândega americana sem declarar o valor. Foram
pegos, presos, admitiram a culpa e cumpriram pena de reclusão em regime fechado
e semi-aberto. Na época veio a público a informação de que parte da quantia foi
encontrada dentro de uma “Bíblia”.
O impacto na igreja por aqui foi de nítido enfraquecimento.
Segundo o professor Paulo Romeiro, da pós-graduação em ciências da religião da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, casos como esse podem até
reforçar os laços de quem tem vínculos exclusivamente emocionais com a
instituição. Mas para o fiel pragmático – cada vez mais presente no rol de
devotos, como bem mostra a alta no trânsito religioso entre denominações – a
força de um caso desse pode ser devastadora. Somada às acusações de lavagem de
dinheiro, falsidade ideológica e estelionato feitas pelo Ministério Público do
Estado de São Paulo (MP-SP), que vieram a público em 2007, a prisão nos Estados
Unidos potencializou as incertezas dos fiéis. “Eles perderam a confiança do
rebanho”, garante outro dissidente. Em 2008, o reflexo da debandada chegou aos
cofres da instituição. Naquele ano, como arrecadou menos, a dívida com aluguéis
de imóveis bateu os R$ 7 milhões.
Pouco depois, enquanto o casal ainda cumpria pena nos
Estados Unidos, veio o segundo baque. Em 18 de janeiro de 2009 o telhado da
sede da Renascer, na avenida Lins de Vasconcelos, no Cambuci, área central de
São Paulo, desabou. No espaço onde boa parte dos cultos era filmada e
transmitida, nove pessoas morreram e 117 ficaram feridas. Um laudo preliminar
apontou como causa do acidente problemas de conservação e manutenção da
estrutura. Dois anos e oito meses após a tragédia, ninguém foi formalmente indenizado.
Em pelo menos dez processos, a igreja foi condenada a pagar valores aos fiéis e
parentes das vítimas fatais que variam entre R$ 10 mil e R$ 150 mil. Mas os
representantes da entidade recorreram de todas as decisões de primeira
instância. Somente o advogado Ademar Gomes promove 37 ações de indenização. “A
responsabilidade da igreja em relação ao que aconteceu já está comprovada pelos
laudos técnicos do Instituto de Criminalística.” O professor de inglês Juris
Megnis Júnior, 43 anos, perdeu a mãe, Maria Amélia de Almeida, 60, e a avó Acir
Alves da Silva, 79. Sem chance de escapar dos escombros, elas morreram
abraçadas. “Não há um dia em que não pense nisso. Nada vai reparar”, afirma.
Dirigentes da Renascer respondem criminalmente e na área cível pelo caso em
dois processos, que ainda não têm perspectiva de desfecho.
Com a credibilidade abalada, a frequência nas igrejas e a
arrecadação caíram ainda mais. Nas reuniões com o bispado nessa época, que
aconteciam às terças-feiras, para rever os resultados da semana anterior, as
humilhações se multiplicaram. Se antes Estevam e Sônia maltratavam os bispos
que não atingiam as metas, agora, dos Estados Unidos, as broncas vinham por
videoconferência, com muito mais veemência. “As reuniões sempre foram um
massacre”, lembra um dissidente. “Mas, com eles nos Estados Unidos, as coisas
pioraram, embora um time de bispos daqui, junto com o filho do casal, o bispo
Tid, tenha articulado um saneamento nas contas da instituição.”
Quando o plano começou a dar resultados, em agosto de 2009,
Tid, ou Felippe Daniel Hernandes, precisou fazer uma operação para reparar uma
cirurgia de redução de estômago malsucedida. Durante o procedimento, ele teve
uma parada cardiorrespiratória que causou um edema cerebral, comprometendo o
funcionamento do órgão e, para todos os efeitos, interditando Tid, que passou a
viver em estado vegetativo. A fatalidade, terrível para qualquer família, foi
ainda pior para os Hernandes, que tinham no filho um sucessor natural preparado
para assumir a Renascer quando Sônia e Estevam se aposentassem. O futuro de uma
igreja que já se arrastava ficou ainda mais incerto. Embora na instituição
ainda se fale em um milagre, para os médicos, o coma do herdeiro, hoje com atividade
neurológica quase nula, é irreversível. Sônia é vista quase diariamente
visitando o filho na ala de tratamento semi-intensivo do Hospital Albert
Einstein. Muitas vezes a visita é feita tarde da noite, depois dos cultos.
Quando Tid precisa passar por qualquer procedimento, como foi o caso na semana
do dia 5 de setembro, momento em que trocou uma sonda de alimentação, a bispa
para tudo para ficar ao lado do primogênito.
Em meados de 2009, foi o agravamento do estado de Tid que
adiantou a volta do casal dos Estados Unidos. A Justiça americana autorizou o
retorno 15 dias antes do fim da sentença, no começo de agosto, para que os pais
estivessem no Brasil, caso o estado de saúde do filho piorasse. O retorno
marcou uma piora na instituição. O saneamento das contas foi interrompido de
vez e a torneira voltou a se abrir para bancar os gastos de Estevam e Sônia.
“Não podíamos tirar da contagem nem o dinheiro para pagar o papel higiênico,
que dirá o aluguel do templo”, diz um bispo sobre a época que sucedeu o retorno
do casal. Contagem é o nome dado pelos religiosos para o procedimento que
acontece logo depois do culto, quando as doações são somadas. “Tínhamos que
remeter tudo direto para a sede.” Com o aluguel atrasado em diversos locais, a
igreja começou a receber ordens de despejo. Em levantamento de dezembro de 2010
feito pelo site Folha Renascer, uma espécie de fórum aberto sobre assuntos
ligados à igreja dos Hernandes, 29 templos aparecem com a ordem registrada por
falta de pagamento de aluguel em nove foros paulistanos. Hoje com fama de má
pagadora, a Renascer tem dificuldade de encontrar proprietários dispostos a
tê-la como inquilina.
Foi também em 2010 que a igreja perdeu seu garoto-propaganda
e principal dizimista, o jogador de futebol Kaká. Com a mulher, Caroline
Celico, eles formavam uma dupla que fortalecia e divulgava a Renascer no Brasil
e no mundo. O casal Hernandes não comenta a saída, muito menos o atleta do Real
Madrid. Apenas Caroline arrisca alguns comentários enviesados. “Confiei no que
me falavam. Parei de buscar as respostas de Deus para mim e comecei a andar de
acordo com a interpretação dos homens”, escreveu ela em seu blog. O mau uso do
dízimo pago pelo craque, que sabia do fechamento de templos e da fuga de
lideranças, teria motivado o rompimento com a igreja. Foi um baque financeiro e
tanto. Kaká é o sexto jogador mais bem pago do mundo e, estima-se, depositava
nas contas da Renascer 10% dos R$ 21 milhões anuais que recebia.
No fim, quem mais sofre é o fiel. Sua religiosidade acaba
envolvida, marginal e injustamente, em questões pouco sagradas. Os evangélicos
têm todo o direito de pagar o dízimo e as igrejas de recolhê-lo. O problema é
quando o dinheiro desaparece dos templos para reaparecer em forma de ternos,
sapatos, brincos e anéis de lideranças pouco comprometidas com a fé. “Estamos
nos trâmites finais do processo, em primeira instância, que acusa tanto Estevam
quanto Sônia por dissimulação de patrimônio, também conhecida como lavagem de
dinheiro”, diz o promotor de Justiça do Grupo de Atuação Especial Contra o
Crime Organizado do Ministério Público de São Paulo (Gaeco-SP), Arthur Lemos
Júnior. O casal costuma atribuir as acusações à perseguição ou à ação de forças
malignas. Até meados dos anos 2000 esse discurso tinha algum efeito. Hoje,
porém, as coisas mudaram. “A Renascer nunca mais será o que foi”, sentencia
Romeiro. Será difícil honrar seu nome de batismo.
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