segunda-feira, 6 de março de 2017

TODA DOR TEM LIMITE

Gustavo Des, Facebook - charge Sinfrônio
Toda dor tem um limite. Quando caminha a seu ápice, se desacelera, faz-se despercebida, míngua-se com ela toda a dignidade humana na medida em que esvazia-se os sentidos. O que dificilmente se mantém em pé, já não está mais no espaço que ocupa, é um vulto, uma nuvem de dor.
Assim é o caso da travesti Dandara, morta covardemente no Ceará por um grupo de rapazes que enquanto deferiam-lhe golpes com toras de madeira na cabeça, riam chamando-a de 'viado feio'. Dandara já não era mais Dandara, não havia súplica de sua parte que pudesse ser ouvida, pois o sangue que escorria pelo seu rosto, cegando-a, também levava consigo a sua humanidade. Já não restava forças, o espectro de humilhação a engolira. Não há morte mais cruel, mais covarde e mais injusta do que a morte da dignidade.
Conduzida por um carrinho de mão rumo a desova, tudo que ouvira antes de receber os golpes finais limitava-se a uma culpabilização por ter nascido num corpo que não correspondia a como se via por dentro e por ser quem é e escolheu ser. Julgada, condenada e sem direito a defesa, tornava-se o exercício da maldade um dever cívico e missionário de seus algozes.
Muito difícil acreditar que nenhuma pessoa tenha presenciado aquilo e mais, que nenhuma pudesse ter interferido de alguma maneira. Era dia, uma rua cheia de residências... Por isso o silêncio faz-se ainda mais desolador.
Se Dandara já não tinha mais voz, que ecoasse a voz de outro, que uma vida não fosse ceifada de forma tão banal e truculenta. Os justiceiros da família, guiados seja lá por que pensamento ou divindade, brincaram com o corpo magro de Dandara, um corpo que já carregava por demais, as dores dessa sociedade intolerante e preconceituosa.
É só mais uma vítima de homofobia num dos países que mais mata a homossexuais e travestis no mundo. Aqui, a não aceitação tende a caminhar para o extermínio. Aqui, filma-se um ser humano ser espancado até a morte para ser motivo de risos e rodar no WhatsApp. A convicção de que a maldade tem caráter disciplinador, que uma criança tem que apanhar para 'virar homem' e quando não vira... Resta a vala.
E nestes tempos de tecnologia, uma filmagem amadora de souvenir a ser exibida como um passaporte para o paraíso.
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