Não gosto de escrever sobre Gilmar Mendes. Acho-o uma figura
antipática e apreensões subjetivas costumam ser um risco ao equilíbrio e ao senso
elementar de justiça.
Critiquei Mendes quando foi ao Congresso defender a urgência
da lei de abuso de autoridade, aliando-se momentaneamente a Renan Calheiros.
Não só pela posição que defendeu, mas pela forma de argumentar. Gilmar afirmou
que operações como a Lava Jato acontecem todos os anos. O correto seria dizer
que foi a mais importante das últimas décadas.
Subestimar a Operação Lavo Jato ou mesmo opor-se a ela faz
parte do jogo democrático. No entanto, ele deu um passo adiante quando afirmou
que o vazamento poderia anular a delação da Odebrecht. Nessa conclusão, nem
seus defensores se alinharam com ele. A própria ministra Cármen Lúcia afirmou
que as delações não seriam anuladas. Uma decisão desse tipo teria repercussão
continental. Muitas acusações contra os políticos em vários países seriam
contestadas se o Brasil anulasse um documento de importância histórica.
Gilmar perdeu nessa. Mas havia outro caminho: questionar a
duração das prisões preventivas da Lava Jato. O Supremo, segundo ele, teria um
encontro marcado com essas prisões alongadas.
Gilmar, individualmente, libertou Eike Batista e seu sócio,
Flávio Godinho. Ele argumenta, com razão, que existe grande número de presos
provisórios no Brasil e quer reduzi-lo. É uma tese. No entanto, na prática,
Gilmar resolve apenas o problema de um milionário e seu sócio, porque à sua
mesa só chegam casos patrocinados por grandes bancas de advocacia.
Gilmar, ao conceder a liberdade a Eike, tomou o cuidado de
determinar medidas cautelares. Isso pelo menos abre uma brecha para negociação.
Parece estranho usar esse verbo, mas Gilmar Mendes lidera a
maioria na turma do Supremo Tribunal Federal (STF) que trata da Lava Jato.
Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli fecham com ele, porque, fiéis ao PT, são do
gênero de magistrado bolivariano, que faz tudo o que seu governo quer.
A Lava Jato se encontra, portanto, diante de um grande
obstáculo. Não creio que a libertação de presos seja decisiva para delações
premiadas. Suponho que pessoas inocentes e adultas não confessam algo só porque
estão presas. Na minha suposição, o fator decisivo nas delações premiadas é a
soma de evidências que é posta na mesa, a certeza do preso de que vai ser
condenado.
De qualquer maneira vai se dar o confronto entre as pessoas
que apoiam a Lava Jato e a trinca de ministros que podem neutralizar a
operação. Não tenho fórmulas para algo tão surpreendente, uma vez que são
ministros poderosos e, como dizemos no esporte, casca grossa, no sentido de que
suportam a pressão social.
Um foco de resistência ao STF são as próprias medidas
cautelares. No caso de Eike Batista, suspeito de esconder sua fortuna, foi
imposta a multa de R$ 52 milhões. Pelo que se entende, se Eike não pagar,
voltará para a cadeia, o que me parece improvável. De qualquer forma, é claro que
uma das razões de sua prisão é evitar que maneje o que restou de sua fortuna,
parte dela formada com dinheiro oficial, isenção de impostos e, por intermédio
de Cabral, expulsão, à força, de pequenos agricultores de São João da Barra.
O caminho será sempre o de demonstrar a necessidade da
prisão. Gilmar, Toffoli e Lewandowski vão discordar. Mas a sucessão de
conflitos entre as necessidades da investigação e o esforço do trio de
ministros para liberar presos pode levar também ao Supremo a necessidade de ampliar
a discussão, em alguns casos.
O importante ao longo do debate é contestar a ofensiva de
Gilmar e seus dois colegas com fatos, demonstrações precisas de que as pessoas
precisam continuar presas. É difícil ficar contra a tese de que prisioneiros
devem ter um limite para sua prisão provisória. Mas é perfeitamente possível
demonstrar, em cada caso, como a prisão ainda é necessária.
No julgamento em que o Superior Tribunal de Justiça (STF)
negou por unanimidade a soltura de Sérgio Cabral, um dos motivos alegados tem
grande peso: combater a sensação de impunidade. Um peso simbólico que vai estar
presente no maior feito da trinca de juízes: libertar José Dirceu, acusado de
continuar no crime, mesmo depois de condenado no processo do mensalão.
A principal mensagem da Lava Jato de que a lei vale para
todos e que os poderosos serão punidos sofre um abalo. Na argumentação de
Gilmar, a lei que rege as prisões provisórias está sendo cumprida. Mas o fato
de que vale apenas para quem consegue chegar à sua mesa reafirma a tese de que
a Justiça atua de forma diferenciada.
A trinca de juízes articulada para neutralizar a Operação
Lava Jato deverá enfrentar uma série de reações que não posso prever aqui. Uma
das mais eficazes seria apressar os julgamentos em segunda instância, o que
levaria os já condenados de novo à prisão.
São fatores um pouco distantes de nossa capacidade de
influência. Ainda assim, não há motive para pânico: a Lava Jato já conquistou
muito e deixou sua marca na História moderna do continente. A ideia de que a
lei vale para todos tem uma força própria e, de alguma forma, a sociedade
transformará essa expectativa em realidade. É improvável que uma trinca de
ministros consiga derrubá-la, liberando políticos e empresários corruptos,
batendo de frente com a lógica de investigações, preocupadas em evitar a
destruição de provas e encontrar o dinheiro roubado.
Sem dúvida, começa uma fase difícil para a Lava Jato e
aqueles que a apoiam. Lutar contra uma forca instalada no coração do Supremo
não é algo comum.
Mas também diria que concordo com a ideia de que a História,
na maioria dos casos, não apresenta problemas sem solução. É apenas mais uma
pedra no caminho. O maior escândalo de corrupção foi posto a nu. O corpo é
muito grande para três juízes se livrarem dele.
Artigo publicado no Estadão em 05/05/2017
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