Márcio Caparica, LADO BI
Divas LGBT são tão divas que não precisam de sobrenome. Beyoncé. Rihanna. Gisele. Cher.
Ivete. A cultura brasileira também tem uma mulher que há vários anos vem
vivendo sua vida pública ostentando apenas o primeiro nome: Marta. Se não
houvesse optado por embarcar no complicadíssimo mundo da política, talvez a
senadora de São Paulo pudesse ganhar um lugar no panteão do imaginário LGBT
nacional digno daquelas que deixaram o sobrenome para trás. Mas, tendo optado
por trocar a carreira de psicóloga e sexóloga pelas disputas de Brasília,
dificilmente conseguirá a unanimidade de que as outras estrelas desfrutam entre
gays, lésbicas e trans, apesar de estar envolvida em vários projetos de lei que
defendem a comunidade LGBT desde 1995.
Na última quinta-feira, ainda comemorando os avanços que o
PLS 612/2011, projeto de lei que pretende colocar o casamento homoafetivo no
Código Civil, teve no Senado, Marta recebeu o LADO BI em seu escritório para
uma longa conversa sobre sua trajetória profissional e política, e seus vários
entrecruzamentos com a causa LGBT. Confira a seguir alguns dos principais
momentos dessa entrevista.
O início de carreira como sexóloga
“Como fiz minha pós-graduação nos Estados Unidos, consegui
uma naturalidade para falar termos como pênis, vagina etc. que os outros
profissionais não tinham. Ficava abismada que falar isso causava tanto espanto.
Quem sofria eram meus filhos – ligavam para minha casa, xingavam… Mas eu era
uma pessoa muito certinha, casada, com um currículo acadêmico que me
qualificava, três filhos… Eu tinha as características corretas para tratar
desses assuntos naquele momento. Sempre tive amigos gays, desde jovem, mas individualmente
– amigos que, quando ganhavam mais intimidade, apresentavam o companheiro. Não
tinha amigas lésbicas.”
O quadro Comportamento sexual, no TV Mulher
“O TV Mulher, programa que foi ao ar a partir de 1980,
falava de temas que na época eram tabu: a mulher tinha que casar virgem,
pensava-se que masturbação levava à loucura, a homossexualidade era considerada
doença. Durante a ditadura, eu podia falar de qualquer coisa, e não podia falar
de nada. Todo dia eu tentava um pouco. Fomos lentamente convencendo aos
censores de que se tratava de um programa educacional. No início eu tinha que
mandar os roteiros por escrito, mas aos poucos fui deixando de enviá-los, até
que parei completamente – e nada aconteceu. Mais desagradável eram os piquetes
que as Senhoras de Santana faziam na frente dos estúdios, xingando, tentando
promover boicotes.”
O despertar do interesse pela comunidade LGBT
“Meu interesse pela comunidade LGBT começou com as cartas de
dor e sofrimento que eu recebia no programa, de pessoas que não podiam assumir
sua identidade e serem felizes. Viviam numa ‘neurose’ fabricada por uma
condição que fazia com que se sentissem excluídas do mundo, sem os mesmos
direitos que seus amigos, seus irmãos. Isso me preocupava muito. Depois que o
programa chegou ao fim, concluí que, na questão dos direitos das mulheres e de
direitos LGBT, eu já tinha feito tudo o que podia com livros e com a televisão,
então fui para política, para poder fazer as leis que poderiam empoderar
mulheres e homens. E fiz.”
O trabalho com Paulo Freire
“Durante a gestão de Luiza Erundina, Paulo Freire foi
convidado para criar um programa de educação sexual para as escolas. A gravidez
durante a adolescência estava muito alta, os jovens não sabiam de nada… Ele me
convidou para ajudá-lo a desenvolver essa ação. Eu ainda tinha muita confiança
junto às mulheres por causa do programa de TV, que tinha recentemente chegado
ao fim, e a maioria das mães dava graças a Deus que eu de certa forma falaria
com seus filhos sobre sexo. Foi um sucesso enorme, o número de gravidezes na
adolescência caiu rapidamente. Infelizmente o Serra cortou esse programa assim
que assumiu a prefeitura, porque era um programa muito caro: os professores
precisavam ser acompanhados e supervisionados, até porque trabalhar a sexualidade
das crianças fazia com que eles tivessem que trabalhar a própria. Agora eu
penso que foi algo de uma ousadia extraordinária, falar de sexo para crianças
na escola. Faz a gente pensar no retrocesso que o Brasil viveu em termos de
comportamento e valores, estarmos hoje numa situação como essa, em que a escola
tem que ser ‘sem partido’.”
O projeto de lei para união civil
“Algo que se aprende rapidamente quando se entra no
Congresso é que dificilmente se consegue exatamente aquilo que se quer – a gente
tem que fazer concessões para conseguir aprovar o melhor projeto possível. Em
1995, depois de conversar com as poucas associações LGBT que existiam na época,
percebi que havia um consenso de que não seria possível conseguir o casamento
igualitário, então optamos por propor a união civil.”
O início da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo
“Quando eu era prefeita estive presente nas primeiras
Paradas do Orgulho LGBT. Não tinha trio elétrico nem nada. A gente ofereceu
banheiros químicos, caminhões de som, televisão organizada, até a própria
avenida Paulista. A Parada começou a ganhar vulto depois que obteve o apoio da
prefeitura. Na hora que a prefeita desfila no primeiro carro, você dá
autoridade para o evento. Acho que foi um grande tiro no pé quando recentemente
houve aquele ato em que uma mulher trans desfilou presa a uma cruz durante a
Parada. Causou uma animosidade religiosa que não era necessária. Quando a
Parada luta pela cidadania, ninguém é contra! Aquilo me pareceu um marketing
exagerado. Esse ano o tema acertou em cheio: a questão do Estado Laico, o
Estado que respeita, o Estado da diversidade, o Estado em que somos todos
irmãos.”
A disputa pela prefeitura de São Paulo em 2008, contra
Kassab
“O comercial de campanha em que se insinuava quanto à sexualidade
de Kassab não foi responsabilidade minha – foi responsabilidade de João
Santana. Fiquei desesperada quando vi o escândalo que aquele vídeo gerou. Até
perguntei para ele: ‘você não percebeu que isso poderia ser interpretado como
algo contra homossexuais, e que isso poderia manchar minha biografia?’. Nós
gravamos um novo vídeo para explicar a situação, mas Santana achou que seria
melhor não colocá-lo no ar quando tivemos espaço no horário eleitoral de novo,
porque ia revirar uma história que estava morrendo. Eu concordei, mas hoje acho
que devia ter transmitido essa resposta sim, para esclarecer essa questão. Esse
caso foi algo que me deixou muito triste.”
Como é ser uma mulher no Senado
“Ser mulher no Senado é algo paradoxal. Ao mesmo tempo em
que os senadores formam clubinhos que acabam por excluir as senadoras, eles
também são mais formais com relação às mulheres, não as enfrentam da mesma
forma como enfrentam os homens. Mario Covas me disse uma vez: ‘difícil discutir
com você: você bate como homem, mas apanha como mulher’. As senadoras precisam
ser muito bravas e assertivas para chegarem ao senado.”
O apoio a LGBTs não custa votos
“A maioria dos senadores já não tem mais nada contra a
comunidade LGBT. Sabem que isso é uma realidade. Mas como não falam com seus
eleitores sobre esse tema, eles não conhecem a opinião de quem vota, e pensam
que vão ser estigmatizados e vão perder votos se apoiarem pautas a favor da
homossexualidade e identidade de gênero. Eu fui eleita deputada, prefeita e
senadora sempre falando do meu apoio à causa LGBT. É um equívoco pensar que as
pessoas deixam de votar em alguém por causa disso. Muitos dos meus eleitores
são inclusive evangélicos! As pessoas escolhem em quem votam por vários
motivos, e os políticos muitas vezes não têm a clareza dessa distinção que o
eleitor faz.”
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